Memórias da primeira ida ao campo, do primeiro contato com as vacas, do sabor ímpar que tinham as frutas colhidas direto das árvores e do medo do escuro, que despertava assim que o sol se punha e dava espaço para a penumbra… É assim, com riqueza de detalhes, que Cida Gomes, assistente de recursos humanos, descreve, aos 52 anos, a sua primeira visita à casa da avó, no Sítio D'Abadia, no interior do Goiás, quando tinha apenas oito anos.
A forma como Cida acessa suas memórias e descreve momentos de sua infância com tanta facilidade desperta a curiosidade daqueles que não têm a capacidade de relembrar os momentos de quando ainda eram crianças, o que acontece com boa parte das pessoas que já se encontram na vida adulta.
A especialista aponta, ainda, que existem diferentes tipos de memórias: as de curto prazo, que usamos temporariamente; e as de longo prazo, que são incorporadas à nossa vida. Ambas têm mecanismos biológicos diferentes e se realizam em partes distintas do cérebro.
Duradouras ou convertidas em inacessíveis com o passar dos anos, as memórias fazem parte da evolução individual de cada ser humano, e a maneira que cada um revisita essas lembranças pode ser extremamente singular.
Lembranças "frescas"
Aos 52 anos, Cida mantém claras memórias dos momentos de infância, sendo a mais antiga, a lembrança do dia em que sua mãe a vestiu, assim como a irmã mais velha, com vestidos coloridos, para que o fotógrafo que residia nas quitinetes de seus pais pudesse as fotografar. "Eu me lembro exatamente do nome do nosso inquilino, era Netinho. Ele era baixo, magro, tinha muito cabelo liso e era branco." Na época, Cida tinha apenas quatro anos de idade.
Ela relata que lembra nitidamente de não ter gostado do resultado da foto, e de, anos depois, ainda questionar a mãe sempre que parava para observar o registro: "Eu achava que minha mãe tinha pegado meu cabelo, passado um gel e feito uma linha para cima, porque, na foto, a gente olha e pensa que é um penteado na minha cabeça", lembra. Cida só entendeu que a linha não se tratava de um penteado "esquisito" aos 12 anos, quando, depois de muita conversa, percebeu que era o ângulo que causava a ilusão de ótica.
Talvez esse seja o caso da assistente, que sorri ao contar que recorda o gosto do bolo servido no aniversário de 40 anos do pai, cujo sabor era o preferido dele, baba de moça e abacaxi.
Cida revela amar fotos e guarda os registros com muito carinho e cuidado. Ela conta, também, que, às vezes, a família se reúne para observar fotografias, conversar e relembrar os velhos tempos. E confessa, em meio às risadas, que guarda fotos de muitos momentos, inclusive do noivado com o pai de sua filha, que, mesmo o casamento não dando certo, rendeu muitas imagens, preservadas com carinho.
Por transmitirem afeto, bem-estar e atenção, as memórias felizes nutrem a saúde psicológica na vida adulta. É o que acontece com Cida, que relata ter tido uma infância feliz, com muitas brincadeiras na rua, aniversários e escorregadas no sabão. Ela se emociona ao relatar os momentos, pois tem um apreço muito grande pelas lembranças que construiu durante toda a vida.
Um branco na mente
Já Allana Amarante, estudante de educação física, tem apenas 18 anos e relata não se lembrar de praticamente nada do que antecedeu os seus 12 anos de idade. A universitária diz ter tido uma infância traumática e, lamentavelmente, os poucos momentos que consegue revisitar são os que a marcaram negativamente.
As fotos tiradas pelo pai de Allana, durante sua infância, não são capazes de recuperar as lembranças dos bons momentos cultivados na época. Apesar disso, ela confessa que se sente feliz ao observá-las. "Eu gostaria, sim, de relembrar momentos bons que eu tive, pois tenho poucas memórias boas."
A psicóloga Juliana Gebrim esclarece que algumas pessoas possuem uma memória melhor, muitas vezes, por terem experienciado momentos positivos na infância. Ela ressalta, ainda, que o ato de se forçar a lembrar de determinados momentos é chamado de "violência neuronal", pois o fato de o cérebro não conseguir recordar certas situações pode ser um sinal de que aquela memória não será produtiva para o indivíduo e, talvez, esse esquecimento seja algo construtivo e constituinte no momento.
Álbum de terapias
Ana Lúcia de Castro Teixeira, 67 anos, comunicadora aposentada e uma das criadoras do Coletivo Filhas da Mãe — um grupo de cuidadoras de mães com demência e outras doenças semelhantes — está sempre atenta ao que esquece e ao que se recusa a deixar a memória levar.
A mãe e o pai de Ana Lúcia apresentaram problemas cognitivos com a chegada da idade e desde que se dedicou a cuidar da mãe nos últimos anos de vida, ela se tornou mais atenta às próprias lembranças. "Eu ainda tenho memórias de quando tinha 4 anos, do meu pai me contando histórias antes de dormir e de passeios com meus avós, mas já tenho dificuldade de lembrar que horas são ou se já tomei os meus remédios", comenta.
Pensando nisso e buscando cultivar com os filhos e os netos as relações que ela teve com seus pais e avós, Ana gosta de reunir a família e contar as histórias do passado. Nesses encontros, cada um traz o seu ponto de vista de determinados momentos, e as memórias vão se tornando mais ricas, com mais detalhes.
Quando a mãe ficou doente, Ana, por conta própria, criou um ritual que passou a chamar de fototerapia. Além de revisitar os antigos álbuns de fotografia de família e conversar sobre as pessoas ali presentes e os momentos especiais registrados, criou álbuns digitais, que sempre deixava passando na televisão, para estimular a mãe. As duas também costumavam escrever legendas para cada uma das imagens, para que pudessem relembrar ao longo dos anos.
Buscando preservar não apenas as suas memórias ou as da mãe, mas pensando nas futuras gerações e em como elas poderiam se lembrar da família, surgiu a tradição familiar de chamar um fotógrafo profissional em todos os eventos familiares. Gravando vídeos no celular com os netos, Ana Lúcia adora rever os registros. "É diferente, porque quando eu assisto e vejo as fotos, eu lembro do momento e penso em como foi bom. Com a memória do fato, vem o sentimento de alegria de novo, e isso é muito precioso."
Obstáculo a ser vencido
Em 2019, Ana Lúcia recebeu um diagnóstico de comprometimento cognitivo, o que não chegou a ser uma surpresa. Ela fortaleceu ainda mais as tradições de registros familiares e a televisão com os álbuns de fotos criados pelo Google Imagens é prática na casa dos filhos e noras.
Mas Ana se orgulha de ainda ter as memórias mais importantes, os momentos com a família, e de estar criando ainda mais lembranças com os netos, que dormem na sua casa toda sexta-feira. "As fotos e os vídeos me fazem lembrar de momentos, e eu vejo como a vida que eu tenho é boa. Os diálogos que surgem quando vemos essas imagens viram novas memórias, muito preciosas."
Não se esqueça de lembrar
Temida por muitos que receiam se esquecer de momentos, pessoas e experiências marcantes, a Doença de Alzheimer é uma patologia neurodegenerativa progressiva, que afeta principalmente as funções cognitivas do indivíduo acometido.
Viviane Monaliza Gomes, gerontóloga do Terça da Serra, explica que o primeiro e principal sintoma é a perda de memória recente, na qual o paciente passa a esquecer nomes, datas importantes e coisas que acabou de fazer. Ela esclarece, ainda, que, apesar da doença ser comumente atrelada ao esquecimento, esse não é o único sintoma percebido. A alteração de comportamento, aparecimento de ansiedade, irritabilidade e de depressão também podem surgir, além de outros inúmeros sinais que se apresentam de forma distintas em cada pessoa.
Praticar atividades físicas e ter uma alimentação rica em bons nutrientes, estimular a parte cognitiva por meio de estudos, jogos, leituras e conversas, auxiliam na criação de novos neurônios. É importante lembrar que, além dos estímulos, é necessário recurso, sem uma alimentação saudável, com os nutrientes necessários, todas as outras alternativas não serão suficientes.
“Má alimentação, sedentarismo, alcoolismo, tabagismo, tudo que vai trazer interferência no seu organismo normal se torna um fator de risco para doenças”, alerta a especialista.
Apaixonada por registrar
Tudo começou quando, aos 11 anos, a estudante Laís Silva, agora com 19, ganhou o primeiro celular com um câmera fotográfica que, à época, era considerada boa. Desde então, registrar os momentos tornou-se a maneira que Laís encontrou para colecionar memórias e preservar lembranças.
Quando criança, a estudante viveu, por um tempo, com os tios e o avô paterno, no interior de Alagoas, mas não tinha nenhuma foto desses momentos, o que passou a ser um incômodo com o decorrer dos anos, já que Laís tinha curiosidades sobre os elementos, os lugares e as pessoas que a rodearam na infância. Para ela, sem nenhum registro, é como se a fase tivesse passado despercebida.
Aos 7 anos, o avô que cuidava de Laís faleceu, o que a abalou fortemente. Algum tempo depois, ela passou a ter dificuldades para se recordar do rosto do avô e criou em sua mente uma face para relembrá-lo. Recentemente, encontrou uma foto 3x4 dele e se deparou com um rosto totalmente diferente do que sempre imaginou. Em decorrência de toda a situação, Laís desenvolveu um grande medo de esquecer as pessoas que ama, quando elas morrerem, e de, quando estiver mais velha, não conseguir se lembrar dos bons momentos da juventude. Por isso, passou a registrar e, agora, planeja revelar as fotos e guardá-las em álbuns.
A estudante acredita que as fotografias têm o poder de retomar lembranças que, por um tempo, permaneceram esquecidas, e associam as pessoas a sentimentos e emoções que foram vividos no momento registrado. "Às vezes, elas até fazem com que você reconecte ligações passadas e restabeleça outros significados…"
Ao fotografar, Laís não preocupa-se com a estética da imagem, mas registra com o intuito de guardar o momento em que está muito feliz, seja sozinha, seja na companhia de amigos e da família. Ela também gosta de capturar vistas bonitas, que costumam lhe causar boas sensações.
Novos desafios para lembrar
A covid-19, além de todo o sofrimento causado pelas mortes e a dificuldade em controlar a doença, trouxe ainda uma nova preocupação no que diz respeito à memória. O professor de pós graduação em gerontologia da Universidade Católica de Brasília, Henrique Salmazo da Silva, envolvido em uma série de estudos sobre a memória, explica que a infecção afeta o sistema cognitivo de várias maneiras.
O vírus tem a capacidade de cruzar a barreira hematoencefálica — estrutura que regula o transporte de substâncias entre o sangue e o sistema nervoso central e protege contra a entrada de substâncias tóxicas — e pode causar degenerações no hipocampo e em outras regiões críticas do sistema nervoso.
A perda de memória tem sido relacionada à perda de olfato, a maioria dos pacientes que tiveram esse problema, tendem a desenvolver dificuldades cognitivas. De acordo com os estudos mais recentes sobre o tema, as memórias episódica, semântica e operacional são as mais afetadas.
Os pacientes têm dificuldade para reter novas informações e resolver problema cotidianos, esquecem palavras e têm mais dificuldade para lembrar de tarefas como tomar remédios ou manter compromissos e tarefas do dia a dia.
“Os pacientes relatam uma sensação que chamamos de brainfog — a pessoa sente uma lentidão mental e tem dificuldade para raciocinar com clareza”, explica Henrique. O gerontólogo acrescenta ainda que os pacientes que tiveram quadros mais graves da covid-19, com períodos de hospitalização e quadros de hipóxia, apresentam sintomas cognitivos mais aparentes.
No estudo que está sendo conduzido pelo Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da Universidade Católica de Brasília (UCB), os voluntários com 60 anos ou mais que tiveram covid-19 e apresentam problemas de memória e atenção após a doença, vão passar por sessões de treinamento que buscam compensar esses eventuais déficits.
Pessoas com mais de 60 anos que não tenham tido covid-19 mas que tenham alguns dos sintomas, também podem participar do estudo.
Os tipos de memória
O professor de pós-graduação em gerontologia da Universidade Católica de Brasília Henrique Salmazo da Silva explica que existem algumas formas de dividir os tipos de memórias. Uma delas, proposta pelo teórico Endel Tulving na década de 1970, chegou a ter 72 divisões e subdivisões. Algumas delas são usadas, hoje, para explicar alguns aspectos sobre o funcionamento das lembranças.
Entre elas, temos a chamada memória episódica, relacionada a eventos situados no espaço — por exemplo, o que você comeu ontem, o que fez antes de ontem. É a lembrança de um episódio.
Já a memória semântica é basicamente o conhecimento de mundo, que se mistura com o conhecimento léxico, sobre as palavras e o aprendizado. “Por exemplo, você sabe quem descobriu o Brasil, mesmo que não tenha ideia de quando essa informação chegou ao seu cérebro, você sabe que ela está lá e faz parte do seu conhecimento”, esclarece Henrique.
A memória operacional é importante no processo de aprendizagem e raciocínio lógico. Nela, processamos as informações que estão sendo passadas naquele momento, retendo e conseguindo realizar determinada atividade.
A memória prospectiva se refere ao famoso “lembrar de lembrar”. Ela é a responsável pelo armazenamento de informações referentes a ações que precisamos realizar no futuro próximo. Por exemplo, tomar um remédio ou lembrar de fazer a mala para uma viagem próxima.
A memória procedural é que envolve mecanismos implícitos de aprendizagem. Traços motores que assimilamos de forma quase automática, sem precisar pensar em cada passo do processo, como dirigir um carro ou andar de bicicleta.
E, considerando os grandes grupos de tipos de memória que englobam diversas outras divisões, existe também a memória autobiográfica, talvez a que as pessoas mais se preocupem em manter ao longo da vida. Esse aspecto da memória envolve o conhecimento de todos os eventos que aconteceram na vida, a sua identidade, quem você é e tudo que viveu até aquele momento.
Henrique acrescenta que a memória é um mundo. “São várias habilidades que dialogam e que precisam uma das outras para um bom funcionamento. Existem divisões para entendermos alguns aspectos, mas está tudo integrado”, completa.
Dicas para manter a memória saudável
• Frequentemente, leia dois livros:
a leitura estimula sinapses, desenvolve a concentração e trabalha a imaginação.
• Teste maneiras diferentes de realizar aquilo que você costuma fazer no automático: escove os dentes e coma com a mão que você não costuma utilizar normalmente.
• Utilize jogos: eles são superimportantes para a estimulação cognitiva.
• Pinte: a pintura auxilia no relaxamento e no alívio do estresse.
• Pratique exercícios: eles são bons para o corpo e para a mente.
• Tenha um bom sono: dormir ajuda a aumentar a atenção, a memória e o aprendizado
Amnésia infantil
Acontece, principalmente, devido às constantes alterações estruturais no desenvolvimento dos processos básicos da memória que ocorrem no cérebro das crianças, fazendo com que não consigam se lembrar do que aconteceu nos 23 primeiros anos de vida.
Rara condição em que o indivíduo lembra-se de todos os acontecimentos de sua vida
SERVIÇO
Seleção de voluntários para pesquisa Treino Cognitivo on-line
para pessoas idosas no contexto da covid-19
Inscrições: até 31 de maio pelo e-mail executivamenteparaidosos@gmail.com ou WhatsApp (61) 99436-5375
Início do estudo: junho de 2023; Periodicidade: encontros duas vezes por semana de forma on-line Duração do estudo: seis meses; Número de vagas: 80