OS GATOS-PINGADOS DO JET SET INTERNACIONAL
Raimundo Floriano
Bagagem prática do homem viajado - Acervo Google
Que sou um homem cosmopolita, traquejado, todo mundo sabe disso. Em qualquer país onde desembarco, sou logo identificado como cidadão internacional, de seu tempo, e isso apenas por visível detalhe: a bagagem que carrego, constituída de mala com rodízios e pequena valise de mão, para objetos de uso pessoal.
Ultimamente, devido à diversificação desses objetos miúdos, tais como faca amolada, calçadeira, lixa de unha, tesoura, para serviços diversos, apito, para a xerifança, todos metálicos, até minha bagagem de mão é despachada, e eu embarco e desembarco em qualquer aeroporto tendo à mão a penas um item, este de caráter inseparável: livro, para leitura no trajeto.
A leitura, vício que carrego desde a infância, faz-me lembrar, a cada check-in, do livro Oliver Twist, do inglês Charles Dickens, escrito em 1838, no qual é narrada a triste sina dum menino nascido para sofrer e que é, a certa altura, vendido aos donos duma funerária para exercer o ofício de gato-pingado, ou seja, menino que ia à frente dos cortejos fúnebres de falecidos sem eira nem beira, desvalidos, fingindo chorar. Como eram escassos os carpideiros, surgiu esta expressão: uns poucos gatos-pingados. E o que isso tem a ver com minha elegante bagagem? Calma! Mais adiante, vocês hão de saber.
Prestem atenção nos filmes atuais. Vocês já viram o Tom Cruise, o Richard Gere, o Brad Pitt, o Anthony Hopkins, o Johnny Depp ou o John Travolta carregando bagagem além da acima descrita? Não! E sabem por quê? O segredo é que todos eles vêm, de há muito, me imitando.
Meu comportamento racional impôs-se desde os tempos em que, fazendo a primeira viagem em minha vida, quase nada tinha pra carregar, o que era característica dos sertanejos de meu tempo, que bem podiam falar como Bias, um dos Sete Sábios da Grécia: omnia mea mecum porto – levo comigo tudo que tenho.
Naquele tempo, a bagagem invariável de todo nordestino desapercebido, ao embarcar na carroceria dum caminhão, ou em balsa, lancha, vapor e motor, era a maleta, o saco de rede e um cofo ou uma cesta para carregar comida, o chamado frito da viagem. Ao desembarcar, o cofo ou a cesta já não faziam parte de sua tralha.
Cofo e cesta: munição de boca, para economizar no passadio - Acervo Google
O sertanejo tem uma virtude que o diferencia de todos os outros patrícios brasileiros: a solidariedade. Eu constato isso todas as vezes em que, no período natalino, vou embarcar algum parente ou amigo na Rodoviária de Brasília. Qualquer deles – homem ou mulher – passa o ano inteirinho trabalhando, dando duro, mas economizando cada centavo ganho, visando apenas a levar um pouco de alegria e felicidade a seus familiares que o aguardam em seu rincão. E é verdadeira mágica a acomodação de tudo o que levam nos bagageiros dos ônibus interestaduais. Nada fica sobrando. Tudo comprado no Brasil, para consumo interno, incrementando o pibinho nacional.
Bagagem de nordestinos: moto e bicicleta também vão - Acervo Google
Agora, vejamos, em contrapartida, o que ocorre com os personagens do jet set internacional. Normalmente, é esta a pequena bagagem de quem desembarca nos aeroportos internacionais brasileiros, deixando, no exterior, o suado dinheirinho para a riqueza dos gringos:
Há bem pouco tempo, eu presenciei, no Aeroporto de Miami, esta cena, com uma socialite brasileira fazendo seu check-in:
Elegância e descontração -Acervo Google
O mais curioso é o fato de que, quando embarcam para o exterior, os colunáveis e outros nem tanto, mal levam a roupa do corpo, numa prática do omnia mea mecum porto. Mas, ao voltar, tchan, tchan, tchan! Tem certas malas internacionais que, perdoem-me a comparação, de tão grandes, se parecem mais com o caixão de defunto de alguém como o Shrek.
E tem mais uma. Aproveitando-se da franquia que as empresas aéreas concedem aos portadores de bagagem de mão, tem certos vivaldinos que carregam verdadeiros jacás, atopetando os compartimentozinhos que ficam sobre a cabeça da gente, com o risco de tudo aquilo despencar de lá de riba, como já soeu amiúde ocorrer.
Certo sábado, eu estava no Aeroporto Internacional de Brasília aguardando uma passageira VIP, que vinha de Miami para conhecer a Capital Federal, comigo atuando como cicerone.
Depois de mais de hora e meia de atraso, eis que o painel anunciou a aeronave no pátio! O alívio foi momentâneo. Passada mais de meia hora, ninguém aparecia no portão de desembarque. Alguém deu um certeiro palpite: – Tá todo mundo sofrendo na revista da Alfândega!
E o tempo marchou. Enfim, apareceu uma passageira, verdadeira locomotiva social, sumida atrás do carrinho que empurrava com sua imensa bagagem:
Acervo Google
Vinte minutos depois, foi a vez da segunda socialite, esta não menos exagerada em seus ricos teréns:
Acervo Google
Sobre o conteúdo de tantas malas, a revista Veja até esclarecera um pouco, em sua Edição nº 2304, de 16.01.13:
A espera começou a provocar certo desconforto nos circunstantes, alguns com placas indicativas de pessoas desconhecidas que aguardavam. O fato não chegou a incomodar-me, pois quando fora anunciado o primeiro atraso, eu correra até a Livraria e comprei o livro Big Jato, do Xico Sá, dando início imediato a sua leitura. Com um livro, o tempo flui que a gente nem vê!
Uma de minhas filhas, estranhando a demora para eu chegar em casa, foi ao Aeroporto saber o que acontecia, isso porque eu não carrego celular comigo. Ao me ver ali sentado, tranquilão, absorto na leitura, perguntou-me:
– Pai, sua convidada ainda não desembarcou?
Respondi-lhe, feito papagaio e repetindo o que ouvira, que ela deveria estar desvencilhando-se de problemas com a Alfândega. Minha filha, admirada com tamanha demora, insistiu:
– Pai, e quantos passageiros já saíram pelo Portão de Desembarque?
Foi a única resposta que me veio na hora:
– Meia dúzia de gatos-pingados!