José Maurício Nunes Garcia nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22/9/1797. Religioso, compositor, cravista, organista, violonista e pioneiro da música clássica brasileira no período colonial. Segundo Andrade Muricy, ex-presidente da Academia Brasileira de Música, é “o maior compositor clássico das Américas”. Sua produção, em torno de 400 peças, é constituída em grande parte de música religiosa, tendo ainda composto música dramática, modinhas e música para orquestra.
Filho de Vitória Maria da Cruz Neto e Apolinário Nunes Garcia e neto materno de escravizado, ficou órfão de pai aos 6 anos e passou a estudar música influenciado pela mãe. Iniciou como aluno do prof. Salvador José, pardo e amigo da família, demonstrando grande facilidade. Aos 16 anos, escreveu sua primeira obra – Antífona Tota Pulcra Es Maria – e aos 17 participou da fundação de uma confraria de professores de música, Ingressou no sacerdócio aos 25 anos, com a intenção de, nesta condição, prosseguir na carreira musical.
Tornou-se mestre-de-capela da Catedral da Sé, contando com um grupo de instrumentistas e cantores. Neste cargo, ficou encarregado de compor para o calendário litúrgico e dirigir as obras. Assim, surgem diversos graduais, como Justus cum ceciderit (1799) e Alleluia, angelus Domini (1799). Teve uma sólida formação, que foi ampliada através de uma grande biblioteca de partituras e tratados musicais, trazida da Europa com a vinda da corte real, em 1808. Desse modo, conheceu as principais obras de Mozart e Haydn e pode aperfeiçoar sua técnica de instrumentação e escrita vocal.
Seu talento foi logo apreciado por D. João VI, que providenciou sua transferência para a Capela Real ocupando alto cargo. No ano seguinte, recebeu o hábito da Ordem de Cristo e em 1816 ficou incumbido de dirigir a missa pela elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal. Apesar do apreço recebido pelo Rei, sua remuneração não foi devidamente revista. Em 1821, com o retorno de D. João VI à Lisboa, passou por uns perrengues financeiros, devido a turbulência política e econômica do processo de independência do Brasil. Os músicos da Capela Real sofreram um grande arrocho salarial.
O Pe. José Maurício, que nunca chegou a ter um piano ou um cravo, foi sendo levado gradativamente à miséria. Além disso, sua relação com os músicos foi prejudicada pelo preconceito. O fato de ser mulato interfere no seu reconhecimento como músico. A situação foi agravada com a vinda do antigo mestre-de-capela -Marcos Portugal-, que passa a usufruir mais privilégios que o padre brasileiro. Assim, enquanto conhece a música erudita praticada na Europa no fim do século XVIII, vive num mundo em que a cor da pela o prende a um mundo cruel e sem direitos.
Sua música procura solucionar, de algum modo, esse conflito. Junto a sua admiração pelos mestres europeus, como Mozart e Haydn, ele se torna um dos iniciadores da música popular no Brasil, com a publicação, após sua morte, das modinhas Beijo a Mão que Me Condena, No Momento da Partida, Meu Coração Te Entreguei (1837) e Marília, Se Não Me Amas, não Me Digas a Verdade (1840). São obras que ficaram menos conhecidas que as obras sacras, como o Requiem e o Ofício de Finados (1816) e as missas de Nossa Senhora do Carmo (1818) e de Santa Cecília (1826).
Não obstante ser lhe atribuído cerca de 400 obras, apenas 240 composições sobreviveram: umas 20 missas, 15 credos, 12 antífonas, 30 graduais, 28 hinos, 10 matinas e ofícios de defuntos, 7 Te Deum, 6 novenas, numerosos salmos e vésperas, sequências, ladainhas etc. além de umas poucas obras profanas. Além de compor, tocar e cantar, foi também professor no curso gratuito que manteve durante 38 anos no centro do Rio de Janeiro. Faleceu em 18/4/1830 e foi o compositor mais prolífico de sua época. Hoje é um dos nomes mais representativos da música brasileira de todos os tempos e o mais importante compositor de sua geração. Uma consistente biografia escrita por Cleofe Person de Mattos – Padre José Maurício: uma biografia – teve uma 2ª edição publicada pela Biblioteca Nacional, em 2019, e uma versão em PDF encontra-se disponível na Internet.
Em meados do século XIX houve um movimento de recuperação e resgate da “música nacional”, incluindo a música sacra, tendo o Pe. José Mauricio em destaque. Sua reabilitação deve-se ao trabalho de alguns apreciadores de seu talento musical, como Manuel de Araújo Porto-Alegre, primeiro biógrafo do compositor, que publicou em 1856 Apontamentos sobre a vida e a obra do Padre José Maurício Nunes Garcia, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Outro entusiasta neste resgate foi o Visconde de Taunay (1843-1899), que defendeu no Parlamento e na imprensa a restauração da obra e a construção de uma memória histórica em torno do padre compositor, vinculando-o à música germânica e contrapondo-o à ópera italiana. Seus artigos, reunidos em livro, em 1930, foram publicados originalmente no período 1880-1898 nas principais revistas brasileiras da época.
Além de escrever sobre José Maurício, Taunay conseguiu que o governo brasileiro adquirisse a grande coleção de manuscritos que Bento das Mercês havia recolhido e com a ajuda de Alberto Nepomuceno publicou o Requiem de 1816 em versão reduzida para canto e teclado. Um trecho de Manuel Duarte Moreira de Azevedo, outro entusiasta do fim do século, é ilustrativo do fervor de seus admiradores neste momento em que ele era “redescoberto” e iniciava-se um processo de mitificação da sua figura e realizações, onde já aparecia como um mestre consumado.