20 de maio de 2020 | 05h00
Leitora de Mário de Andrade e José Mauro de Vasconcelos, psicóloga que deixou a profissão para se dedicar à literatura, Olga tem 58 anos e vive entre Wroclaw e uma pequena vila como a que situa o romance Sobre os Ossos dos Mortos, lançado em novembro pela Todavia, e onde passa cada vez mais tempo para “tentar enraizar”.
Seu primeiro livro publicado aqui, Vagantes, vai ganhar nova tradução no ano que vem e deve se chamar Viagens (o original é Flights). Ainda em 2020, sai A Alma Perdida, infantil dela com ilustrações de Joanna Concejo – uma história sobre espera, paciência e desapego. Sobre os Ossos dos Mortos é narrado por Janina, uma excêntrica professora de inglês aposentada, amante da astrologia e defensora dos animais, que se envolve na investigação de uma série de assassinatos macabros.
Leia trechos da entrevista concedida por e-mail e traduzida por Piotr Kilanowski, professor de literatura polonesa na UFPR.
Este é um romance policial clássico, mas não só. O que você tinha em mente quando começou a escrever este livro e por que quis contar essa história?
Eu dispunha de seis meses, queria fazer algo leve. Pensei também que, uma vez que estava escrevendo um pastiche de suspense com enredo de novela policial – pois me parece que nos tempos de hoje não é mais possível escrever algo assim totalmente a sério – iria fazer meu trabalho com toda seriedade. Eu me empenhei para seguir as exigências da literatura popular: algo que seja facilmente digerível, não muito extenso e com imagens. Gosto muito das ilustrações (da edição original) pintadas por Jaromir, pois são assombrosamente tristes. No final, embora a intenção em si fosse modesta, ao escrever esse livro acabei me envolvendo e o vivenciando profundamente. Quando manipulava os personagens, desenhava as cenas para eles, tive impressão, e é algo que ocorre muito comigo, de estar jogando o sempiterno e poderoso jogo mitológico. Então nesse sentido não me afastei muito de mim mesma.
Você concorda com Janina, que acredita que o mundo é injusto e mau?
Às vezes me acontece de pensar como Janina, quando vejo quanta desgraça ocorre no universo e como não estamos conseguindo lidar com este mundo. Mas, no fundo, sei que o mundo não é desse jeito nem daquele outro. Ele simplesmente é. E nossa responsabilidade por ele, como seres conscientes, é enorme.
Por falar em mundo, esses são tempos estranhos, em que presenciamos um aumento do totalitarismo e enfrentamos algo como o coronavírus. Ao longo da história, a Polônia aprendeu a começar de novo. Talvez estejamos neste ponto: vamos precisar descobrir uma forma de recomeçar depois do coronavírus. O que podemos aprender, ou deveríamos aprender, com esta pandemia?
Penso que antes de tudo estamos aprendendo a humildade. É um conceito antigo e ao que parece um pouco em desuso. O ser humano esqueceu sobre a humildade diante da natureza, diante das forças maiores que ele mesmo. Impelido pela inacreditável soberba, destruiu muito ao seu redor: seres vivos, meio ambiente, paisagem. Agora está se preparando para a conquista do cosmos. A pandemia nos ensina que ainda somos apenas uma das espécies que vivem na Terra, dependente de uma complexa rede de relações, que nosso corpo é frágil e mortal e que nossas possibilidades são limitadas. Tenho impressão que observamos a volta da sentença memento mori, tão popular no barroco europeu, a época que teve que lidar com as epidemias e guerras cruéis e com as forças que o ser humano não conseguia dominar. A volta da visão do mundo como um mistério, a volta da procura pelo sentido da existência humana na Terra, a volta da pergunta sobre a natureza do homem e sobre a origem do mal. Podem ser tempos bem interessantes.
Como esse tempo de isolamento a toca pessoalmente?
Devo dizer que tudo isso não influenciou minha vida de uma maneira significativa. Precisei cancelar as viagens, mas isso foi até um certo alívio. Fazia tempo que eu não morava na minha própria casa. Para mim, é o tempo de serenar e de colocar os assuntos atrasados em dia. O tempo de lockdown coincidiu também com uma grave doença de meu cachorro, o que acabou sendo bom, pois pude dedicar muito mais tempo a ele.
O que a motiva? O que você busca como escritora? E por que trocou a psicologia pela literatura?
É quase a mesma coisa. Olhe para Freud – ele é escritor ou psicólogo?
Quando você ganhou o Nobel, disse que acreditava que a literatura aproximava as pessoas. O que mais ela pode fazer por nós e o que ela já fez por você?
Penso que cultura de um modo geral tem como objetivo ordenar e transmitir a experiência humana. Simplesmente assim. É um mecanismo evolucionário sem o qual não sobreviverá nenhuma sociedade. É uma forma de comunicação muito sofisticada e profunda e ao mesmo tempo compreensível para a maioria. A literatura nos integra, pois nos mostra os outros a partir de seu interior. Graças a ela podemos viver as vidas das outras pessoas, entrar nas suas existências. Mostra também as semelhanças que se sobrepõem às diferenças, pois atinge aquela esfera da experiência humana que é fundamental e comum a todos.
A literatura precisa ser política e provocativa?
Na acepção mais ampla do político, sim. O político compreendido amplamente sempre se relaciona com o ato de refletir e de construir nossa própria concepção do mundo. Observo o mundo e escolho o que é bom e o que é ruim – para mim, para os outros. Essa valorização frequentemente é feita inconscientemente. Às vezes tentamos nos abster de julgar. A reflexão nos serve para fazermos isso de modo consciente e então construímos a nossa visão do mundo. Não existem livros apolíticos. Sempre transparecem neles alguns mecanismos sociais, mecanismos de gênero, de comportamento, decisões, escolhas que se referem de uma maneira mais ou menos direta à realidade. Mesmo o conto de fada sobre a Cinderela ou um romance por mais meloso que seja serão políticos naquele sentido mais amplo – falarão sobre os condicionamentos de relações de gênero, sutilmente aludirão à dominação de um sexo pelo outro, apresentarão alguns tipos de exclusão, opressão e economia, por mais rudimentares que sejam. Entendo política de forma muito ampla, como uma reflexão sobre o mundo e não apenas a questão de eleições parlamentares ou governo de um partido ou outro.
Você está familiarizada com a literatura latina?
Eu era adolescente na época do boom da literatura ibero-americana na Polônia. Cresci e me formei lendo essa literatura: Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar, Mário Vargas Llosa, José Donoso, Ernesto Sábato, Mário de Andrade, José Mauro de Vasconcelos, Luis Sepúlveda e outros. Penso que como escritora e leitora tenho muito a agradecer a ela. Acho que temos muito em comum – nós, centro-europeus com a nossa sensibilidade popular-camponesa-católica-pagã, e vocês. Me parece, no entanto, que existe uma diferença básica e que é perceptível também na literatura – nós somos soturnos.