Bilros manipulados pelas mãos hábeis das rendeiras
Como se fora uma ladainha das festas profanas, das muitas que ainda hoje são realizadas em muitos lugares do Nordeste, a letra da música imortalizou a lembrança cultural de alguém que, inicialmente não passava de um sofrimento obrigatório, para “passar o tempo” – enquanto Lampião não chegava.
Lembro, era assim:
“Olê, mulé rendêra
Olê, mulé rendá
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá
(Tu me ensina a fazê renda)
(Que eu te ensino a namorá)
Lampião desceu a serra
Foi dançá em Cajazeira
Encontrou Maria Bonita
Que virou mulé rendêra
Encontrou Maria Bonita
Que virou mulé rendêra”
Crescemos escutando coisas assim ou parecidas. O tempo passou e algumas pessoas da família até se envolveram diretamente com a atividade da manipulação dos bilros, dos espinhos de cardeiro (nome que damos aos espinhos de cactos no Ceará), às almofadas arredondadas, linhas quase sempre branca e uns desenhos (modelos) em papel seguidos à risca para a formação das peças de renda.
A “rendêra” virou “Rendeira” depois de uma pertinente e admirada musicalidade até então considerada matuta – mas que sempre teve muito do contar o sofrimento de alguns que viviam apenas esperando a morte, ou a felicidade com os namorados que conviviam com o cangaço.
Mãos hábeis seguram os bilros que seguem o “modelo” de alguma peça de renda
Minha hoje falecida tia-avó Teté foi uma ainda “rendêra” de mancheia. Se, viva estivesse, seria hoje uma “Rendeira” dessas de grifes famosas cujas lojas funcionam apenas nos “xópis”, com peças de valor individual inalcançável para alguns. São peças feitas sob encomendas.
Pois Teté me mandava para as capoeiras “caçar, tirar e trazer” espinhos de cardeiro para que ela pudesse afixar os trabalhos já feitos nas almofadas. Fazia peças que, à primeira vista, nem os melhores teares da indústria eram capazes.
Teté foi apenas mais uma que viveu o sonho de esperar a chegada de alguém do cangaço de Virgulino. Teté morreu virgem (cabaço) e se contentava apenas com a almofada entre as pernas. Calma. A almofada! Nada de bilros!
Peça de renda feita por rendeira de Beberibe
Nos dias atuais, fazer renda em artesanato é uma profissão. Reconhecida. Pelo menos em meio aos artesãos.
Não exige estudo, não exige graduação acadêmica, mestrado ou doutorado – e ninguém exige para que o “deploma” seja amostrado. É um trabalho feito com as mãos. Há quem afirme que a tradição da renda teria vindo da Europa e da África.
Já lemos em algum escrito que, ansiosa para agradar à “dona”, uma escrava, com a habilidade desenvolvida com o que aprendera com os antepassados, fazia peças para a patroa. Agradou e, ansiosa para proporcionar às semelhantes o mesmo direito de ter a amizade das patroas, ensinou.
No Brasil, renda de artesanato é considerado “coisa de branco”, daí a aproximação pelo menos teórica, que teria com os antigos escravos. No Ceará é uma fonte de renda (dinheiro). Cascavel, Beberibe, Aracati têm polos de produção e propagação desse tipo de artesanato.
Mas a maioria aproxima a “Rendêra” com o fato da espera por alguém. A mulher “esperava alguém” e aproveitava para preencher o tempo fazendo renda.
“Rendêras” fazendo poesia com linhas, bilros e espinhos