Acordei-me com o som cadenciado e harmonioso da alvorada tocada pelo corneteiro. Amanhecia o dia 1º de abril de 1964, eu tenente do Exército Brasileiro, dormia no quartel na 2ª Companhia de Guardas, tropa de elite do IV Exército, altamente treinada contra distúrbio e guerrilha urbana, sediada na Avenida Visconde de Suassuna, Centro do Recife. Uma luminosa manhã acordava a bela histórica cidade mauriciana. A Companhia estava de prontidão há mais de uma semana, sem algum militar sair do quartel devido aos acontecimentos políticos da época. O presidente João Goulart acendia uma vela a Deus outra ao Diabo (disse Julião). O processo de desgaste político do presidente espalhou-se sobre a Nação. Jango pensava ter um esquema militar forte comandado pelo General Assis Brasil, inclusive o General Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, jurou de pés juntos a Arraes que defenderia a legalidade. Quando a conjuntura mudou, ele também mudou. A situação ficou mais nebulosa depois do grande comício das reformas em frente ao Ministério do Exército, dia 13 de março, com muitos discursos provocativos às Forças Armadas. Jango estava cutucando a onça com vara curta. As informações que nos chegavam era que Jango daria um golpe transformando o Brasil numa República Socialista Sindicalista.
Naquela bela manhã logo depois da formatura matinal, o capitão Luís Henrique Maia reuniu os cinco tenentes comandantes de pelotão, fez uma preleção.
– Chegaram informações que a tropa do general Mourão Filho de Minas Gerais estava a caminho do Rio de Janeiro para levantar o I Exército, e depor o presidente João Goulart. O General Assis Brasil deu ordens para uma tropa sediada no Rio marchar de encontro e deter a tropa do General Mourão, acontece que a tropa do Rio aderiu e se juntou à tropa do General Mourão, que ruma ao Rio De Janeiro. O objetivo da intervenção militar será restabelecer a ordem no país, garantir a eleição para presidente em 1965 e evitar um golpe do presidente João Goulart estabelecendo um regime socialista.
O capitão Maia mandou preparar o pelotão para o enfrentamento, entrar em combate urbano a qualquer momento. Informavam que tropas do Estado do Governador Miguel Arraes estavam altamente armadas e bem preparadas por guerrilheiros cubanos e chineses.
Dirigi-me ao alojamento de meu pelotão, com a cabeça a mil, sabia que haveria uma confrontação naquelas próximas horas. Ainda estava em divagações quando o comandante me chamou e deu as primeiras ordens: Dissolver uma manifestação no Sindicado dos Bancários, ficava distante cinco ou seis quilômetros. Ordenei ao pelotão entrar em forma, passei em revista o armamento e equipamento, falei aos sargentos e soldados sobre a missão, deixei bem esclarecido: atirar só com minha ordem. O pelotão tomou a rua, formação em cunha. Enquanto aqueles 44 soldados bem armados e equipados avançavam pelas ruas arborizadas, ouvi vaias e palmas, era o povo dividido. Enquanto o pelotão se aproximava do objetivo, eu continha a emoção, pensando nas informações que os sindicalistas, os camponeses, os homens de Arraes junto à Julião e Gregório Bezerra tinham sido treinados em guerrilha e possuíam armamento de primeira linha.
Assim que avistei ao longe a multidão em torno de 400 pessoas, tive de controlar um sargento que me pedia para dar um tiro para o alto a fim de dispersar a multidão. Mandei o sargento se aquietar, lembrei que o comando era meu exclusivo. Não queria que houvesse uma reação por parte dos manifestantes e terminar numa carnificina de balas dos dois lados. Tentaria um diálogo, se possível. O pelotão se aproximou, dava para ver as fisionomias dos manifestantes, o sargento insistindo, me pedindo para atirar; eu reprendi, NÃO ATIRE!. Chegando mais perto, gritei a voz de comando ao pelotão “Acelerado marche!”. Os soldados passaram da marcha comum ao acelerado, correndo em passos curtos, o que se ouviu um barulho assustador do coturno batendo forte no chão. De repente tive a maior alegria, o maior alívio de minha vida ao perceber a multidão dispersando-se em todas as direções. Invadimos o sindicato, ficaram apenas três manifestantes. Pedi para eles saírem ou teria que levá-los presos, era a ordem. Apenas um barbudo, corajoso, magro, me encarou: “Só saio morto ou preso”. Disse-lhe “Como não vou lhe matar, esteja preso”. Fiz uma revista geral na sede do sindicato, mandei lacrar os móveis, deixei cinco soldados guarnecendo o sindicato, retornei com o resto do pelotão para o quartel da 2ª Cia de Guardas.
O pelotão marchando mais relaxado em duas colunas, uma de cada lado da rua, e o barbudo, sindicalista, andando no meio sozinho. Achei constrangedor, tive pena. Encostei-me e inventei na hora em seu ouvido: “Estão matando tudo que é comunista, como Fidel Castro fez em Cuba no Paredón, ao chegar ao quartel você vai ser fuzilado. Vou lhe dar uma chance, na próxima esquina lhe empurro e você sai correndo!”. O sindicalista olhou para mim, espantado. Perto da esquina, o barbudo, olhava para trás encarando-me com olhar suplicante. Na esquina, puxei-o pelo braço e o empurrei. Ele deu um pique, se escafedeu na primeira rua (ainda hoje deve estar correndo).
Durante o percurso de retorno, de cima dos apartamentos, alguns aplaudiam outros vaiavam. Ao passarmos pela Faculdade de Engenharia, alguns estudantes gritavam provocando: “Viva Arraes!” O sargento me incitava a dissolver os estudantes. Eu neguei, confesso, pensando em meu irmão Lelé, poderia estar entre os estudantes (e não é que estava! Eu soube depois).
No quartel fiz um relatório verbal. Nesse dia ainda cumpri outras missões patrulhando o Recife Velho. À noite, a televisão chamava de Intervenção Militar. Não havia aparecido o termo Revolução, nem Ditadura. Nenhum cientista político, nenhum futurista, nenhum especialista, para usar um termo moderno, seria capaz de imaginar que aquele 1º de abril seria o primeiro dia de Governo Militar ou Ditadura durante os próximos anos. Só sei que foi assim, sem tirar, nem pôr.
ESTA SÉRIE “MEMÓRIAS DE UM OITENTÃO” SERÁ PARTE DE UM LIVRO DE MEMÓRIA EM COMEMORAÇÃO AOS 80 ANOS DO AUTOR. AGUARDEM DEZEMBRO (SEM CORONAVÍRUS)