O XERIFE BRASILEIRO
Raimundo Floriano
O Xerife em uniforme de passeio
Meu maior sonho de consumo, hoje, é morar num quatro-quartos na 216 Sul. Até 1998, era andar de navio!
Acho que esse intenso desejo se originava no fato de eu ter sido criado praticamente dentro do Rio Balsas, e do aspecto de que a minha primeira viagem na vida fora a bordo de uma embarcação.
Mas nunca me mexia para realizar a fantasia. Ficava a imaginar, quando assistia a filmes na TV ou no cinema, como o Titanic, o encanto que seria viver essa aventura.
Pois no mesmo ano em que o Titanic passou em Brasília, 1998, minha filha Elba completaria 15 anos e escolheu, em vez de festa, um pacote turístico que incluía excursão à Disney e viagem pelo Caribe, partindo de Miami e indo até Cancun, no México. No dia 11 de julho, eu, Veroni, Elba, Mara e Carolina Leal, a Carol, debutante e nossa amiga, viajamos rumo ao desconhecido.
Fiquei tão alvoroçado com a segunda parte do pacote, que nem prestei muita atenção nos brinquedos e demais diversões dos parques em Orlando.
Na segunda quinzena de julho, embarcamos, em Miami, no navio Leeward, da Norwegian Cruise Line, uma pequena cidade com população, contando passageiros, tripulantes, músicos e artistas, em torno de 3 mil pessoas, comandado por um norueguês, o Capitão Jan Ottessen.
Para se ter uma ideia da extensão física do navio, o ator John Travolta e a cantora Gloria Gaynor também viajavam conosco, conforme publicado no jornal diário de bordo, mas não os vimos em momento algum.
Tão logo zarpamos, a primeira emoção já se nos apresentou! Naquele ano, o dólar valia apenas 1 real, fazendo com que os Estados Unidos ficassem abarrotados de brasileiros. No mesmo roteiro, seguiam mais três navios: na frente, o Leeward, no meio, o Ecstasy e, na retaguarda, o Sovereign Of The Seas, guardando cerca de 3 quilômetros um do outro.
À tarde, o lance de arrepiar! O navio Ecstasy começou a pegar fogo, acidente transmitido pela TV para o mundo todo e também visto por nós a olho nu. No Brasil, inclusive para os meus familiares, foram momentos de grande aflição, sem saberem em qual deles estávamos.
Tudo não passou de um grande susto, pois os bombeiros de Miami são eficientíssimos e, em pouco tempo, debelaram o fogo. Os passageiros do Ecstasy foram resgatados pelo Sovereign.
Se eu boquiaberto já estava com o ocorrido, mais perplexo fiquei com o mundo novo de glamour e requinte com que me deparei no interior do Leeward. O cassino, as lanchonetes, as piscinas, os shows ininterruptos no deck, os bingos, os jantares a rigor, os espetáculos à noite e, lá fora, o mar, o verde mar, que se estendia até o horizonte – tudo isso valia o esforço que fizera saindo de vidinha acomodada de sempre para usufruir de tudo aquilo que me ofuscava de tanto fulgor.
Navio Leeward: pequena cidade flutuante
Tratei logo de fazer amizade com as pessoas que me interessavam, dentro do plano que concebera desde que saíra de Brasília. No navio, a gente podia agradar à vontade os tripulantes com gorjetas, que eles chamam de tip, existindo até uma tabela para nossa orientação.
Comecei com o garçom jamaicano Patrik, molhando-lhe generosamente a mão, para que me trouxesse no café da manhã, diariamente, pão francês feito na hora. Caso vocês não saibam, quase todos os pães lá no exterior são doces. Nos jantares, Patrik também me orientava para não cometer gafes.
Vou interromper minha narrativa para responder-lhes a pergunta que me fariam se aqui estivessem: como é que eu me entendia com eles, os jamaicanos, os americanos e os noruegueses? E eu esclareço: com o meu Inglês macarrônico! Quem tem vergonha, passa fome!
Já com o camareiro americano Owen Wilson, a conversa foi bem outra. Pedi-lhe que me conseguisse uma entrevista com o Imediato do navio. Feitas as devidas gestões, o Imediato, que era norueguês e se chamava Olav Eriksson, descendente de vikings, bravos navegantes que fizeram a história da Noruega, recebeu-me em seu camarote.
Revelei-lhe a minha aspiração. Falei-lhe do sonho que estava realizando, mas sua plenitude não seria atingida se eu não fosse agraciado com um cargo na tripulação do navio. Nem que fosse de porco-d’água, marinheiro desqualificado, como se falava em minha terra.
O Imediato respondeu-me que sentia muito não poder atender-me, porque eu não possuía curso náutico algum que me habilitasse a qualquer cargo de navegador.
Contei-lhe, então, o caso de Vasco Moscoso de Aragão, personagem do livro Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado, que fora nomeado Capitão de Longo Curso por amigos seus, oficiais da Marinha Mercante Brasileira.
Olav Eriksson novamente quis me dissuadir. Revelou-me que o livro de Jorge Amado é conhecido por toda a marujada norueguesa, mas que o relato não passa de ficção.
E eu, brasileiro que sou, apelei mais uma vez à sua boa vontade, perguntando se ele não poderia dar um jeitinho. Pois não é que o Imediato achou uma solução!
Disse-me que eu poderia ser nomeado Xerife do Leeward, caso quisesse, bastando para isso adquirir a estrela correspondente na butique – no exterior, tudo se compra, tudo se vende – e a usasse na Noite do Capitão, para que o posto fosse oficializado.
A estrela é imponente! Com seis pontas, tem no centro um escudo, dentro do qual se vê a figura do Leeward. Acima do escudo, em baixo-relevo, a palavra Sheriff; abaixo dele, o nome do navio.
Luxo, brilho, esnobismo, fausto, exibição, novo-riquismo, ostentação, esplendor e o que você pensar de sedução e encanto caracterizam a Noite do Capitão.
Vestindo meu terno mais vistoso, e acompanhado de minha família, toda ela nos trinques, tendo na lapela esquerda o símbolo do Vasco da Gama e, sobre o bolso direito a competente estrela, fui entronizado no Leeward no posto náutico de Xerife.
O Capitão Jan Ottessen e o Xerife: noite de gala
Na última noite a bordo, realizou-se o Baile das Debutantes, no amplo salão de festas, tendo como astro convidado o ator global Eduardo Moscovis.
Retornando ao Brasil, passei a ostentar a nova insígnia e a exercer a minha xerifança em Brasília, sendo, no futuro, reconhecido como Xerife da Academia RECOR e da Academia BOCA.
No desempenho do meu nobre ofício, uso dois tipos de uniforme: o de passeio e o de serviço. O de passeio consiste de uma camisa escura, com a inscrição Balsas-MA no peito direito, estrela no peito esquerdo e quepe, no qual se veem, na frente, a inscrição Balsas-MA, encimada pelo símbolo do Exército Brasileiro, ladeado pelos símbolos do Serviço Público, da EsSA - Escola de Sargentos das Armas, a Bandeira Nacional e o símbolo do BPEB - Batalhão de Polícia do Exército de Brasília. O de serviço varia apenas na cobertura, um chapéu de abas rebatidas para cima, com os símbolos do Exército Brasileiro, da EsSA, da Infantaria e do BPEB, e as bandeiras do Brasil e de Portugal.
Muita coisa tem acontecido comigo depois que me vi investido nesse destacado posto.
Logo que cheguei ao Brasil, estava olhando umas vitrines lá no Venâncio 2.000, com o uniforme de passeio, quando fui polidamente abordado por dois policiais militares. Perguntaram-me o que significava aquela estrela. Disse-lhes que era Xerife e mostrei a inscrição nela contida. Os policiais questionaram a explicação, dizendo que esse cargo de Xerife não existe no Brasil. Contei-lhes a história de minha investidura no navio Leeward, mas nem assim se deram por satisfeito e solicitaram que eu lhes mostrasse meus documentos. Comecei pela identidade de 2º Tenente da Reserva do Exército Brasileiro. Foi o bastante! Os dois bateram continência e se retiraram!
Doutra feita, estava eu, com o uniforme de serviço, num barzinho do Setor Comercial Sul, desses próprios para happy hour, para assistir ao lançamento do livro Mil Piadas de Salão: Dicionedotário, de Alan Viggiano. Como chegara cedo, sentei-me sozinho numa das inúmeras mesas disponíveis e aproveitei para adiantar a leitura do exemplar já comprado, enquanto aguardava o Alan para pegar o meu autógrafo.
Os convidados foram chegando e ocupando as demais mesas, mas nenhum se habilitou a me fazer companhia, embora, dali a pouco, não houvesse lugar para mais ninguém sentado.
Perto de mim, chegara um grupo barulhento de jovens, que ocupara duas mesas e se divertia a valer, tendo como o chefe das brincadeiras e das piadas um coroa baixinho e gordo. Notei que todas as pilhérias eram dirigidas à minha figura, mas fiz que nada percebia. Não contente com os gracejos, o grupo desafiou o gordinho a ir falar comigo e apurar quem eu era. E o gordinho não se fez de rogado. Chegou à minha mesa, sentou-se e perguntou:
– Você é Xerife!
Respondi-lhe:
– Why don’t you diet? – tradução: por que você não faz uma dieta?
Ele olhou para a sua turma, esboçou um sorrisinho amarelo, e voltou à carga:
– Você é americano?
Retruquei-lhe:
– OK, big donkey! – tradução: é isso aí, grande jumento!
O gaiato levantou-se e voltou para a sua mesa, onde a tagarelice teve um fim.
Quando estive a passeio no Nordeste, notei que por lá ninguém respeita a faixa de pedestre, diferentemente dos motoristas de Brasília, que são exemplo para todo o País.
Em João Pessoa, em frente ao Hardman Hotel, onde me achava hospedado, havia uma delas, recém-pintada, bem visível, separando-o da Praia de Manaíra. Mas era muito difícil atravessar a pista ali, pois ninguém obedecia ao sinal de vida – aceno para os veículos com o braço na horizontal.
Estranhei aquilo e conversei com os taxistas que fazem ponto no local, e eles me explicaram que na dita faixa já ocorrera até atropelamento de turista.
Sabendo disso, subi ao meu apartamento, enverguei o uniforme de Xerife e postei-me junto à faixa, com um apito na mão. Bastava fazer o sinal de vida, e todos os carros paravam como se isso fosse um velho costume dos pessoenses. Os taxistas regozijavam-se e me pediam:
– Xerife, não vá embora! A Paraíba agradecerá!
Aqui em Brasília, certa manhã, eu acabara de apitar um jogo de dominó dos aposentados, na Banca de Revistas da 215 Sul, e me dirigia, em uniforme de passeio, para a Loteria da 414. Ao chegar na faixa de pedestre confrontando com o Bar Cristal, já havia lá um garoto desconhecido, regulando uns 10 anos de idade. Um carro se aproximava. Eu e o garoto demos o sinal de vida. Quando botei o pé na faixa, o menino gritou:
– Xerife, o carro não vai parar!
Estaquei no ato!
Com razão! No volante, vinha uma mulher falando ao celular, sem dar mostra alguma de que nos vira. Instintivamente, soprei com energia o apito que trazia ainda dependurado no pescoço, para que ela tomasse conhecimento da gravidade do ato que acabara de cometer.
O apito surtiu efeito. Lá diante, a mulher parou, estacionou o carro na grama e veio falar comigo, achando que eu tivesse autoridade para aplicar-lhe uma multa. Ao chegar, interpelei-a:
– A senhora viu o desastre que ia causando? Poderia até nos matar!
Ela começou com a conversa mole de sempre:
– Foi só um momento de desatenção, porque eu estava muito preocupada e com pressa.
Voltei à carga:
– Ainda mais, falando ao celular, o que é proibido!
A mulher tentou contemporizar:
– Será que o senhor não poderia aliviar, ao menos por esta vez?
Nesse momento, o menino, que não arredara o pé dali, falou para a mulher:
– A senhora está enganada! Todo mundo aqui na Quadra sabe que o Xerife não é lagoa!
– Não é lagoa? O que é isso, menino?
E o garoto:
– O Xerife não é lagoa pra refrescar c(*) de pato!
A mulher virou uma fera! Nervosa, gritou para o menino:
– Me respeita, moleque atrevido!
E foi-se retirando. Após umas 10 passadas, abriu uma carteira que portava no bolso do casaco, retirou dela uma nota de 50 reais, arremessou-a na minha direção e prosseguiu sem olhar mais para trás.
O garoto, vendo que eu já ia encetando a caminhada rumo à 414, pegou a nota e azulou no mundo, em desabalada carreira!
Ora, vejam só!
O Xerife em uniforme de serviço