Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

De Balsas Para o Mundo sexta, 31 de março de 2017

O TEL

HISTÓRIA DE AMOR SELVAGEM

Raimundo Floriano

 

 

Vovô Osório: boêmio enfeitiçador

 

            Andei batendo cabeça pelo mundo do namoro, desde o começo dos anos 70 até ao início dos anos 80, sem conseguir arrematar um ponto com nó. Nada saía certo. Até que as oportunidades apareciam, e muitas, mas não duravam mais que um verão, um Carnaval.

 

            Até que certo dia me veio à cabeça um estalo de sapiência. A solução dos meus problemas estava bem ali, à minha mão, ao meu alcance, e não a aproveitava.

 

            Acontece que, na minha patota de boteco, dominó e papo-furado havia um feiticeiro iorubá-pernambucano, o Vovô Osório, na época com 97 anos de idade.

 

            Osório Lopes de Santana nasceu em Nazaré da Mata-PE, a 19.03.1885, vindo a falecer na Cidade Ocidental, em 14.01.2004, aos 118 anos de idade. Na época em que este episódio aconteceu, ele residia numa casa simples na QI 16 do Guará I, identificada por uma placa pregada no muro anunciando: Vovô Osório é aqui!

 

            Tocador de cavaquinho, violão e exímio pandeirista, era figura infalível nas nossas rodadas de dominó, baralho, samba, cerveja e pinga em qualquer birosca daquela satélite. Em sua casa, lia mão, jogava búzios, botava tarô, benzia, unia e desapartava. O que ele amarrasse, ninguém mais desatava. O que ele separava, ninguém mais conseguia juntar. E foi ali naquela modesta residência que fui procurá-lo certa noite fria de julho de 1981.

 

            Ao ver-me na sua sala de consultas, nem me perguntou nada, nem ao menos fez as deferências comuns aos colegas de farra e de gole. Foi logo dizendo:

 

            – Seu lugar não é aqui!

            – Mas... – tentei eu argumentar, no que fui energicamente interrompido.

            – Tome vergonha na cara! Vá procurar mulher de sua laia!

 

            E, sem dizer mais nada, conduziu-me à porta da rua. Saí de lá danado da vida, pra morrer de raiva do catimbozeiro, do falso amigo que não quis socorrer o outro em momento de aflição. Nem bem me distanciara, e ainda ouvia a voz dele gritando lá na escuridão da noite:

 

            – Da sua laia! Da sua laia!

 

            Aquela sentença ficou martelando minha cabeça. Cheguei em casa, me deitei na cama e comecei a rememorar todas as tentativas que fizera para recompor meu lar, reconstruir uma família.

 

            E, com a voz do Vovô Osório a retinir no meu ouvido, repassei todos os casos que tivera. Tudo com gente da minha laia: moças de minha terra natal, colegas da UDF e da Câmara dos Deputados, outras que frequentavam os mesmos ambientes sociais que eu, as passistas da Banda da Capital Federal, meninas do Bloco de Sujos Sumo do Guará, todas, portanto, gente da minha laia!

 

            E foi cismando e remoendo que, de repente, cheguei a uma lagoa azul, calma e serena, onde uma bela e jovem índia – na aldeia é chamada de cunhã – se banhava. Acerquei-me e perguntei se também podia banhar-me ali. Ela disse que sim. Tirei a roupa, fiquei só de short, mas quando fiz menção de entrar n’água, a índia me alertou de que aquela lagoa era sagrada e nela ninguém podia entrar de roupa. De modo natural, sem estranhar, fiquei completamente despido e mergulhei na água azul.

 

            A cunhã me contou, então, que pertencia à Nação Tapuia, era aculturada, morava em Brasília, trabalhava na Câmara dos Deputados – sua laia! –, e que na aldeia era conhecida como Nita, sendo irmã da índia Caxuxa, mulher do Cacique Saló Kriakaso.

 

            Terminado o banho, perguntei-lhe se podia voltar no dia seguinte, e ela prontamente concordou. Ao retirar-me, meu coração começou a balançar, ao lembrar-me da bela cunhã. Será? Teria sido amor à primeira vista? Mas as palavras do Vovô Osório retiniam no meu ouvido: “Sua laia! Sua laia”.

 

            No outro dia, retornei decidido a conquistar aquela cunhã e fazê-la minha mulher, de qualquer jeito, mesmo contrariando as recomendações do feiticeiro.

 

            Depois do segundo banho, e já vestidos, um marimbondo picou a índia na coxa, o que a fez levantar a saia para me mostrar. Aí, meus amigos, não tive como conter o olhar malicioso! E vejam bem como é a natureza humana. Enquanto estávamos na lagoa, completamente sem roupa, nenhum pensamento sensual me passara pela cuca. Apenas o amor e a intenção de conquistar a índia me ocupavam o pensamento. Mas foi só ver o que estava escondido, fiquei todo enfeitiçado pelo encanto revelado. Por isso mesmo, e pelo amor que me dominava, pedi que a índia voltasse novamente no dia seguinte, com o que ela concordou.

 

            Ao distanciar-me, a expressão sua laia não me saía do pensamento. E grande claridade me iluminou. Eu era descendente de Jerônimo de Albuquerque e de Muira-Ubi, índia tabajara, depois batizada como Maria do Espírito Santo, filha do Cacique Arcoverde, correndo em minhas veias, portanto, o sangue índio!

 

            Não sei quantas vezes nos encontramos, nem quantos banhos tomamos depois disso. Com sua laia sem sair da minha mente, um dia perguntei à índia se estávamos namorando. Ela respondeu que sim e acrescentou:

 

            – Você é meu manaíra!

 

            Embora eu não soubesse o significado da palavra manaíra, fiquei pra estourar de tanta alegria.

 

            Sempre fui um grande mergulhador, habilidade que aprendi e treinei quando menino, atravessando o Rio Balsas, uns 60 metros de largura, dum fôlego só. Querendo exibir-me para a cunhã, mergulhei na intenção de passar de um a dois minutos submerso. Já levara uns 30 segundos, quando avistei lá no fundo uma coisa brilhando. Apanhei-a. Era um isqueiro a gás. Algum caçador ou pescador descuidado o perdera ali.

 

            Duvidando que ele ainda funcionasse, tentei acendê-lo. Na primeira tentativa, a chama se projetou. E, nesse momento, algo muito estranho e assustador aconteceu. O que eu não sabia era que, desde o primeiro banho com a cunhã, a mata me observava com centenas de olhos. No momento em que gás se fez fogo, cerca de trezentos índios nos cercaram e todos eles se curvaram diante de mim, fazendo reverências e exclamando:

 

            – Yawarapope, Membecapy! Yawarapope, Membecapy!

 

            Conduziram-me à presença do Cacique Saló Kriakaso e segredaram-lhe ao ouvido algo que não pude entender, após o que o cacique fez-me a mesma reverência e também exclamou:

            – Yawarapope, Membecapy! Yawarapope, Membecapy!

 

            E, como primeira providência, instou que lhe entregasse o ibiratata. Vendo que eu não entendia, um índio ficou ao meu lado, servindo-me de intérprete e me ordenou, mostrando o isqueiro:

 

– Entregue o pau-de-fogo!

 

Obedeci. Após receber o ibiratata, o cacique me perguntou, recriminando:

 

– Como tem coragem de profanar nossa lagoa sagrada?

 

Sem titubear, e querendo entrar logo de sola no que mais me interessava, falei com muita firmeza na voz:

 

– Quero me casar com a índia Nita!

 

O cacique tentou demover-me de minhas intenções:

 

– A índia Nita é uma das virgens da tribo e está reservada para se casar com um grande chefe guerreiro!

 

Expliquei-lhe que eu era Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, estando, assim, preparado para chefiar muitos homens, se fosse necessário entrar em combate. O cacique opôs mais um obstáculo:

 

– O chefe guerreiro que casará com a índia Nita deve pertencer à tribo.

 

Respondi-lhe contando a minha origem tabajara. Disse-lhe que, com o casamento, também passaria a pertencer àquela Nação. Falei-lhe que eu exercia um cargo de chefia na mesma tribo onde a índia Nita trabalhava, a Câmara dos Deputados. Vencidas estavam todas as barreiras.

 

E, no mesmo momento, o enlace matrimonial se realizou, mas somente diante de minha promessa de que, chegando a Brasília, trataria logo de oficializar a união no cartório competente.

 

A cerimônia foi simples. Com um espinho de tucum, o pajé furou meu dedo anular e o da índia, fazendo brotar de cada um pequena gota vermelha, e mandou que juntássemos os dois sangues.

 

Tremi nas bases. Naquele tempo, a aids já era o mal que afligia o mundo. Como é que eu, um cabra criado na boemia, na esbórnia, poderia macular a pureza daquela jovem índia? Ela, porém, percebendo minha relutância, falou-me com doçura:

 

– Não tem perigo! Você é meu manaíra!

 

O índio que me servia de intérprete traduziu:

 

– Manaíra quer dizer favo de mel!

 

Unidos os sangues, éramos um só corpo e um só espírito. A cerimônia se deu por encerrada, começando a festança. E quem nos aparece ali, com seu terno branco, óculos escuros, copo de cerveja na mão e um embrulho contendo um cobertor como presente de casamento? Ele mesmo, o Vovô Osório que, a cada momento, entre uma bicada e outra, gritava a todo pulmão:

 

– Sua laia! Sua laia! Sua laia!

 

Minha mulher, a cunhã tapuia

 

E aí, não sei se isso foi sonho, se ainda estou sonhando, o certo é que, desde julho de 1982 – um ano após a consulta com o feiticeiro – estou casado com uma neta da Nação Tapuia, com a qual tenho duas filhas, duas indiazinhas que enchem de alegria o nosso lar.

 

De vez em quando, me vem recordação daquele sonho em que tudo rapidamente se passou. A minha estranheza quanto ao nome com que fui batizado pela tribo: Yawarapope, Membecapy. Foi o cacique Saló Kriakaso quem me fez a tradução: Mão de Onça, Pé de Pano. Como eu ainda não entendesse, ele me esclareceu:

 

– Mão de Onça, porque você tirou fogo da água! Pé de Pano, porque pisou macio para ganhar o amor da índia Nita.

 

Na hora de acender o fogo sagrado, o pajé veio lá do seu cafofo com um isqueiro na mão e acendeu a chama. Aí, eu fiquei baratinado. Se eles já conheciam isqueiro, que chamavam de ibiratata, por que deram tanto valor ao meu, chegando ao ponto de chamarem-me de Mão de Onça, culminando com aquele confisco do meu pelo cacique? Mas Saló Kriakaso apressou-se a solucionar o impasse:

 

– Foi o primeiro isqueiro do mundo que nós vimos acender na primeira lapada, na primeira faiscada!

 

A tapuia-tabajara, nossa primogênita

A tapuia-tabajara, nossa caçula


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