E Deus ordenou – “faça-se o sol” – e tudo saiu das trevas
Havia algumas horas, a noite chegara com aquela escuridão pesada como se transportando chumbo. Eu, deitado na rede, na tentativa de minimizar o cansaço e o sofrimento físico do corpo, era embalado pela sinfonia das cigarras, dos grilos e, como se fosse um instrumento de percussão a marcar o ritmo, aquela sinfonia era completada pelo coaxar de um ou mais sapos – não havia como identificar a quantidade deles.
E eu tacava o pé na parede, para impulsionar e firmar o bom balanço da rede. Era bom ficar ali, escutando o som que o silêncio fazia. Dava para distinguir, lá longe, o barulho que as folhas faziam ao tocarem umas nas outras.
De repente, como se mandadas por alguém de espécie diferente, as cigarras pararam de cantar. Os grilos continuaram, e agora, cantando mais alto, como se para compensar a parada intempestiva das cigarras.
Voltei a tacar o pé na parede. Agora a rede estava mais embalada, permitindo escutar, também, ao mesmo tempo que a cantata dos grilos, a ranger das escápulas enferrujadas.
Intempestivamente, da mesma forma que pararam, as cigarras entraram no tempo e na hora certa na sinfonia. E o silêncio da noite, a cada momento, ficava mais audível, nos transportando para a realidade do enfrentamento de um novo dia na manhã seguinte.
O horizonte parecia mostrar um novo sol por estar repleto de esperanças
Na roça, quando o galo canta como se estivesse tocando o berrante de um vaqueiro, não adiante mais tentar ficar na rede. É nessa hora, que também começam a tocar os chocalhos dos bodes e cabras no chiqueiro – todos mancomunados como se estivessem caminhando para o embarque na Arca de Noé.
É, mal comparando, a cada dia que amanhece, uma verdadeira “Revolução dos bichos” (ainda bem que George Orwell já faleceu e nunca vai ter chance de ler essa citação). É, também, mais alguns minutinhos, que a gente se prepara para receber o rei. O rei sol!
E lá vem ele. As nuvens ficam vermelhas no horizonte do céu. Em fração de segundos vão amarelecendo, numa mágica poética cujos versos nem precisam de rima. Ele, o sol, nos penetra pelos poros e se abriga no coração.
Poeticamente, muitos já cantaram que, a cada dia um sol diferente nasce para todos. Uns o aproveitam. Outros, nem tanto. O sol, queima uns na medida exata – mas acaba queimando outros além da necessidade e da conta.
Aqui podemos ver que o sol “queimou” além da conta
O dia amanhece, parecendo ser igual ao de ontem. Não é. É tudo diferente – e existe a necessidade vital de continuar vivendo como se tudo fosse igual. Não é. É um novo dia, embora os propósitos e objetivos sejam os mesmos.
E, quando o dia amanhece, o sol é outro. É o sol de hoje. O outro sol, era o sol de ontem e, com certeza aquecerá e até poderá queimar pessoas que não são as mesmas. E a única coisa que parece ser igual hoje como ontem é o chão. O chão tórrido, com ranhuras provocadas pelo calor – a água evapora e, de longe parece estar em ebulição. Como larvas vulcânicas.
Queima. Enegrece a pele.
Na roça, resseca o milho se as espigas tiverem sido “viradas”. Há momentos que a os espantalhos parecem suar. Suar um mínimo que tenha acumulado nos dias anteriores – quando chovia e o sol permitia.
É o sol.
É o rei sol – que nunca conseguirá se encontrar com a rainha lua.
O homem procura entender a necessidade e o calor abrasador do sol
A gente anda. O sol parece nos acompanhar, mas aonde for, ele chegará primeiro, alegre por ter deixado em nós as suas marcas e impressões digitais – levou a nossa fotossíntese.
E ele pode. Pode, porque é o rei. Somos os súditos que por ele derramamos o suor.
Eis que finalmente o sol está indo embora para retornar amanhã
Eis que, não mais que de repente, o rei mostra que gastou boa parte das suas calorias. Precisa de recarga e, no sertão, começa a se esconder por detrás de uma montanha de nuvens que se misturam com a terra. Amarelas que começam se transformar e escuridão, como uma poesia que diz tudo e ao mesmo tempo não diz nada.
Por alguns estantes o rei sol muda de cor. Parece fugir do contato com a rainha lua.
Vai-se escondendo, escondendo e escondendo. Até que, finalmente desaparece.
E no dia seguinte, quando o galo cantar com o som e a força de um berrante, as nuvens voltarão a ficar avermelhadas, depois amarelecidas para louvar e ceder reverência ao rei. O rei sol.
E aí será um novo dia. Os chocalhos voltarão a tocar estridentemente, avisando que, mais tarde, haverá uma nova audição dos grilos e cigarras.