O SOCÓ E O MUÇUM – LENDA BALSENSE
Matéria publicada no Jornal da Besta Fubana no dia 19.8.2013.
O Correio Braziliense, maior jornal da Capital da República, estampou, no domingo passado, dia 11.08.13, esta matéria:
“O Presidente do STF e Relator do Mensalão, Ministro Joaquim Barbosa, negou individualmente os embargos infringentes. Considera absurda a tentativa de discutir o assunto. Segundo ele, a Corte já analisou todos os argumentos trazidos pela defesa, e os advogados tentam apenas ‘eternizar’ o processo. Inconformados, os réus entraram com novo recurso, para que a palavra final seja dada pelo Plenário do Supremo.”
Diante desse combate renhido que o Ministro Joaquim Barbosa, nosso herói, vem travando contra a corrupção, e das chicanas que se antepõem à vitória da Justiça, veio-me à lembrança a época de minha venturosa infância em Balsas, sertão sul-maranhense.
Era no tempo do Rei, da Rainha, da Feiticeira, do Príncipe, da Princesa, da Fada-madrinha, do Lobisomem, do Cabeça de Cuia, do Vaqueiro, do Cantador, da Bruxa, da História de Trancoso e da Carochinha, do Mundo Encantado que povoava nossa imaginação infantil, no qual éramos introduzidos pela tradição oral do Velho Sinésio.
Em Balsas, onde não havia cinema e só duas ou três casas possuíam aparelhos de rádio, o Velho Sinésio exercia a mais bela profissão que conheci desde que me entendo por gente, a de Contador de História, praticada de porta em porta, a chamado dos respectivos pais de família, ocasião em que toda a meninada da vizinhança ali se ajuntava para ouvi-lo. A televisão ainda não fora inventada.
Eu e meus irmãos mais velhos tivemos a sorte de participar dessa maravilhada plateia. Na esquina de nossa casa, no meio da rua, havia frondoso pé de manga, embaixo do qual, à boca da noite, acendíamos uma fogueira, sentávamo-nos e éramos transportados para o mundo fantástico do Velho Sinésio, sempre que papai, Seu Rosa Ribeiro, o contratava.
O repertório abrangia não só as tradicionais histórias infantis, como também as lendas simples do sertão, quando ele abusava de sua capacidade criativa para contar-nos algumas com personagens por todos nós conhecidas, muitas delas inventadas, como esta do Socó e do Muçum. Para auxiliar a compreensão dos leitores, vou definir cada um dos personagens.
Socó - Design. comum a várias aves ciconiiformes, ger. paludícolas, da fam. dos ardeídeos, esp. dos gên. Tigrisoma, Butorides e Botaurus, de ampla distribuição, hábitos diurnos, crepusculares ou noturnos, sendo encontradas isoladas ou aos pares. Entenderam? Não? Nem eu! Por isso, aí vai a imagem:
Socó abicanhando a presa - Acervo Google
O socó, o martim-pescador e outros pássaros piscívoros têm um especial manejo para engolir a presa, verdadeiro malabarismo. Pescam-na como visto na figura acima. Em seguida, jogam-na para o alto, fazendo com que ela lhe caia de ponta-cabeça diretamente na goela. Jamais a engolem pelo rabo, pois até os bichos sabem que quem engole pelo rabo, enrabado será.
Muçum - Peixe teleósteo simbranquiforme, da fam. dos simbranquídeos (Synbranchus marmoratus), encontrado em rios, lagos e açudes da América do Sul; é desprovido de escamas, nadadeiras pares e bexiga natatória; a pele, amarelada nos adultos, secreta grande quantidade de muco. Em períodos de seca, vive durante meses enterrado em túneis; possui capacidade de sofrer reversão sexual. Não entenderam? De novo? Empataram comigo! Eis a figura:
Muçum presepeiro - Acervo Google
O muçum é o maior bagunçador de um pesqueiro. Além de não ser comestível, o fisgado enrola-se na linha, embaraçando-a toda. Isso dentro d’água. Fora, dana-se a pular e enrodilhar-se, dando o maior trabalho para tirar-lhe o anzol da boca, visto que é mais liso do que quiabo ensaboado e não morre com porrada. Para matá-lo, só mesmo com fogo. É o peixe mais resistente de todos o que já pesquei.
Isto dito, passemos à lenda contada pelo Velho Sinésio.
Na Lagoa do Maravilha, distante uma légua de Balsas, um socó tentava capturar seu almoço, mas os peixes andavam vasqueiros, não aparecia unzinho para matar-lhe a fome, até que ele viu um muçum dando sopa ali perto. Já quase morto de fome, pensou: – Vai esse mesmo! E engoliu o muça. Pela cabeça, é claro, que ele não era besta de correr o risco acima referido.
Acontece que o muçum, esperto pra caramba, não se deu por vencido: entrou pelo bico e saiu pelo fiofó. O socó, ao vê-lo dando sopa, e pensando que se tratasse de outro indivíduo muçunático, engoliu-o novamente. E outra vez o muçum saiu-lhe pelo furico. A operação ficou a repetir-se indefinidamente, isso porque o socó, por nunca encher a barriga, continuava com mesma fome lascada que o trouxera à lagoa.
O socó deglutindo – e expelindo – a presa
Depois de umas horas, vendo tanta fartura, o socó deteve-se um pouquinho em sua comilança e exclamou?
– Eita lagoa da peste para ter muçum que não acaba mais! Tô feito!
Resumo da ópera: adaptando-se a lenda para os tempos atuais, a socó seria a Justiça, e o muçum, os embargos infringentes, declaratórios, procrastinatórios, chicanatórios, eternizatórios, etc. e coisa e tal.
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