O SISTEMA PARLAMENTARISTA DE GOVERNO
EQUÍVOCOS HISTÓRICOS COMETIDOS PELO BRASILEIRO
A. C. Dib
Ao debater sistema de governo, historicamente, vislumbramos dois grandes equívocos cometidos pelo povo brasileiro, decorrentes do desconhecimento da matéria: o primeiro deles é o de confundir parlamentarismo com assembleísmo, ou confundir parlamentarismo com governo de assembleia, governo do parlamento; outro equívoco frequente, fruto do imediatismo característico da cultura brasileira, consiste em debater sistema de governo vinculando o debate aos políticos presentes naquele momento histórico, de modo a se verificar quais políticos se beneficiariam da adoção do sistema e quais seriam prejudicados por ele.
O temor, manifestado pelo brasileiro, de que o Congresso venha a governar, na hipótese de adoção do parlamentarismo, advém do desconhecimento do autêntico funcionamento do regime parlamentar de governo. Profundamente desgastado por uma série de escândalos de corrupção e por práticas fisiológicas desmoralizantes ― muito presentes no bloco intitulado Centrão, de grande influência na Câmara dos Deputados ― o Congresso Nacional é visto hoje com grande desconfiança por expressiva parcela da população. Curioso observar que o brasileiro, a um só tempo, ataca o seu parlamento e continua, ano após ano, a eleger os mesmos caciques e clãs da política estadual, as mesmas figurinhas carimbadas intermitentemente envolvidas em escândalos político/criminais.
O governo de assembleia ou governo convencional foi o regime introduzido na França pela Constituição Montanhesa de 24 de julho de 1793, renovado nas Assembleias Constituintes francesas de 1848 e 1871, e ainda hoje adotado pela organização política da Confederação Suíça, cujo Executivo, o Conselho Federal, deriva-se da Assembleia Federal, que o elege e exerce sobre seus atos um domínio incontestável. Este sistema de governo, pode-se dizer, é uma degeneração do sistema parlamentarista de governo. Com efeito, ao invés do chamado governo de gabinete (próprio do parlamentarismo), o governo de assembleia aplica absoluta preponderância da assembleia. Nele o ministério ou gabinete tem influência política bastante reduzida, restando tutelado pelas bancadas parlamentares majoritárias, que assumem a direção e o controle do governo e de sua política. O gabinete converte-se em mero delegado ou comissário de uma assembleia que, verdadeiramente, governa. O Executivo recebe um mandato imperativo, revogável ad nutum pela assembleia.
Não é este o caso do autêntico sistema parlamentarista de governo, notadamente o caso do moderno parlamentarismo monista, onde o gabinete, tendo à frente o primeiro-ministro, efetivamente exercita a direção do governo, cabendo ao parlamento ― além da função de legislar ― a fiscalização e o controle do aparelho governamental (papel que lhe cabe, aliás, no próprio sistema presidencial). No parlamentarismo o Executivo ― o gabinete ― possui autonomia e independência, gozando de ampla liberdade de atuação político/administrativa, respeitado o programa ou plano de governo com o qual se elegeu. A ele lhe cabe, com exclusividade, todos os atos de governo. Isso se dá, notadamente, nos regimes em que imperam o bipartidarismo ou o pluripartidarismo com composição de blocos ou coligações partidárias sólidos e duráveis, daí a importância de casar o sistema parlamentarista com o sistema eleitoral distrital. Ao votar em um deputado federal, o eleitor, conhecendo o partido daquele candidato e o plano de governo apresentado por aquele partido, vota com o propósito de ver formada a maioria que elegerá o primeiro-ministro. Portanto, o voto, no parlamentarismo, tem a finalidade de escolher representante no Poder Legislativo e de, ao mesmo tempo, escolher o governo. O eleitor elege seu deputado já de olho no futuro gabinete. O voto implica na eleição do legislativo, na formação da maioria parlamentar e na constituição do governo. Elege-se, pois, de uma só vez, legislativo e executivo (o governo). No moderno parlamentarismo, tamanha é a liberdade, a autonomia e a força para governar de que o gabinete goza que pode, até mesmo, nas hipóteses de divergências com o parlamento, resistir às pressões parlamentares dissolvendo-o, hipótese em que o soberano árbitro, o povo, será convocado a julgar a questão mediante realização de novas eleições.
O outro equívoco clássico cometido pelo brasileiro, quando se põe a discutir o melhor sistema de governo para o País, consiste em atrelar o debate ao nome dos políticos em atuação naquele momento. Resulta, então, do debate, saber qual seria o melhor sistema de governo para o político X governar, ou qual seria o melhor para impedir o político Y de governar, ou como seria o parlamentarismo com Z no poder e por aí vai a patacoada. Essa lamentável inversão de valores resulta da visão imediatista de mundo, própria do brasileiro. Vale lembrar que homens passam, governos passam, mas as instituições permanecem. O brasileiro, lastimavelmente, exibe notória dificuldade em atuar vislumbrando o futuro, plantar no presente para colher depois; prevalece o hoje, o agora, a premente necessidade de solução imediata de suas demandas por um redentor milagreiro investido de plenos poderes. No debate sobre sistema de governo não prevalece a preocupação séria em se definir qual sistema é o mais aperfeiçoado, qual o que melhor confere estabilidade política ao Brasil, qual o sistema mais democrático ou qual o que melhor confere participação popular nos destinos da nação e melhores soluções para os conflitos próprios da política. Prepondera, sempre, visão estreita, tacanha, provinciana, consistente em saber se o parlamentarismo viria para ajudar fulano, ou para prejudicar sicrano ou impedir beltrano de exercer os poderes plenos que o presidente tem no presidencialismo.
Assim foi, primeiramente, no plebiscito sobre sistema de governo realizado em 6 de janeiro de 1963. Com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, avizinhando-se a ameaça de ruptura constitucional com a posse de João Goulart, foi instituído, por emenda constitucional, o parlamentarismo, remédio salvador da democracia brasileira. A mesma Emenda à Constituição que o implantou previu também a realização de plebiscito para definir o sistema de governo a ser adotado. Jango cuidou de fazer campanha nacional ― rádio e televisão ― pelo presidencialismo, sustentando, com dramaticidade, o casuísmo da adoção do parlamentarismo, aplicado exclusivamente com o propósito de impedi-lo de governar como presidente no sistema presidencialista. A campanha maciça de João Goulart terminou por sensibilizar o brasileiro, resultando em vitória do presidencialismo com mais de 80% de votos. O desenrolar da história todos bem conhecem.
Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, foi a questão do sistema de governo debatida com grande paixão pelos senhores constituintes. Expressivo bloco parlamentar se formou pelo sistema parlamentarista, contando com grandes constitucionalistas e políticos de renome, como Afonso Arinos de Melo Franco. No entanto, o Presidente José Sarney, expoente da ditadura militar que assumiu o poder ― em golpe de sorte ― com a doença e morte do saudoso Tancredo Neves, de quem era vice, promoveu hercúlea pressão sobre os constituintes, notadamente sobre os membros de sua base de apoio, pela manutenção do presidencialismo, argumentando que a adoção do parlamentarismo seria casuística e visaria, exclusivamente, impedi-lo de governar no presidencialismo, exercitando os amplos poderes que esse sistema lhe conferia. A agressiva pressão de José Sarney ― inclusive com ameaças de golpe de estado na hipótese de adoção do parlamentarismo ― redundou em vitória do presidencialismo por 343 votos a favor contra 213 votos contrários (dos parlamentaristas), em uma das raríssimas sessões em que todos os constituintes se fizeram presentes em plenário.
O debate sobre sistema de governo ganhou, ainda, uma fugaz sobrevida, com a previsão, inserida no texto constitucional, de realização de um plebiscito para se decidir sobre regime de governo ― república ou monarquia ― e sistema de governo ― parlamentarismo ou presidencialismo. Na propagando eleitoral gratuita que os grupos ― parlamentarista republicano, presidencialista e monarquista ― levaram a cabo, políticos que eram virtuais candidatos a Presidente da República no presidencialismo, como Lula, Leonel Brizola e Orestes Quércia, sonhando com as delícias dos poderes presidenciais (Lula o conquistou), saíram a campo pelo presidencialismo. O mantra e bordão empregado por esses presidencialistas de ocasião era o de que a memorável campanha das Diretas-já, que mobilizou milhões de brasileiros nas ruas pelo voto direto para presidente, terminaria frustrada e traída pela adoção do parlamentarismo. O plebiscito se deu em 21 de abril de 1993. Uma vez mais venceu o presidencialismo com 55,4% dos votos válidos contra 24,6%, computados dos votos válidos, para o parlamentarismo.
A história política da América Latina ― presidencialista toda ela ― é a história trágica de permanentes e intermitentes rupturas constitucionais: golpes militares, golpes comunistas, golpes promovidos por caudilhos políticos, guerras, guerrilhas e movimentos terroristas, revoluções, tentativas de golpes, ditaduras (militares, comunistas e dos caudilhos latinos), constituições outorgadas, instabilidade política permanente, tensões e crises políticas, opressão, perseguições políticas, torturas, exílios, populismo eleitoreiro, caciques e feudos políticos, miséria, corrupção institucionalizada e subdesenvolvimento. Em verdade o sistema presidencialista só triunfou com êxito pleno em um único país do mundo, aquele que o criou, os Estados Unidos da América. E isso se deve ao gênio único do povo americano, cônsul de seus direitos e do valor inestimável da liberdade. Ali o sistema de freios e contrapesos efetivamente funciona. O Brasil não foge à malfadada regra latino-americana. Desde a fundação da República (que aflora, aliás, por um golpe de estado) pequenos intervalos de normalidade democrática se fizerem suceder por tenebrosas ditaduras. Em verdade, quando os positivistas do Império conspiravam pela república, presidencialismo era algo que não constava da pauta. Dentre aqueles ardorosos republicanos, ninguém falava em presidencialismo. Acabou por nascer o presidencialismo, acompanhando o nascer da República, pela ação de Rui Barbosa que, ipsis litteris, copiou o modelo presidencial norte-americano na primeira Constituição Republicana brasileira. No fim da vida, porém, o saudoso jurista se confessou profundamente arrependido da adoção do presidencialismo para o Brasil. Mesmo os períodos de normalidade constitucional democrática na República brasileira estremeceram ora pela ação nociva de líderes caudilhescos, ora pela ação de conspiradores e golpistas extremistas.
Hoje mesmo os desafios enfrentados por nossa jovem e heroica democracia se mostram agigantados, com a ação funesta e liberticida de horda de fascistas que clamam por golpe de estado e por instituição de ditadura e pela ação ambígua e nebulosa de um presidente democraticamente eleito, mas pouco comprometido com o ideal democrático e que parece apoiar veladamente a famigerada campanha antidemocrática, flertando perigosamente com o autoritarismo.
Esperamos que o avanço do desenvolvimento econômico, da educação ― notadamente a educação política das futuras gerações ― e a consolidação da democracia pelo exercício livre dos direitos políticos facultem ao povo brasileiro, algum dia, optar por um sistema de governo que efetivamente funcione e que confira verdadeira estabilidade à vida política nacional, ao invés de colocar seu destino sempre nas mãos de bufões ridículos, de tiranos, de figuras messiânicas, populistas, de salvadores da pátria.