Na sombra do angico transformada em Senado e Câmara tudo era aprovado
O forte aroma da floração primaveril do angico tangido pelo vento era um convite para alguns sentarem à sua sombra e usufruírem do local, usando como assentos os cambitos e as cangalhas.
Era ali também que, o jumento “Feliciano” e o burro “Dourado” descansavam e aproveitavam para ruminar suas rações de capim misturadas ao milho e colocadas à disposição.
Uma gamela com água, também aproveitada pelas galinhas transformava o desenho imaginário do local numa fazenda. E não era uma fazenda. Era a casa de Raimundim de Maria de Horácio – onde também morava uma reca de meninos, todos “descobertos” no calor dos galanteios das duradouras noites de lua cheia.
Era ali usufruindo da sombra do angico, que se reunia o “senadinho” do lugar. Era onde se sabia de tudo e, também, onde se resolvia tudo. Desde o início da colheita do feijão ou do milho de cada roça cooperativada, até o plantio da maniva, ou carpina interativa e coletiva da vazante – quiabo, melancia, batata doce e alguns pés de abóbora.
Debaixo daquele angico era também aonde se abatia, limpava, cortava e vendia o porco, o bode, o carneiro ou o boi para o consumo da comunidade. Lavagem e limpeza de vísceras não eram permitidas para evitar a proliferação de moscas, ratos e outros insetos roedores. Enfim, aquele angico tinha o mesmo papel que hoje tem o shopping ou a Associação Comercial de cada cidade.
Nas tardes de sábado o local era preparado para receber um encerado de caminhão, enquanto o fole de Seu Tôquim animava e promovia gratuitamente o melhor forró pé-de-serra dos arredores.
Com o suor escorrendo pelo sovaco e pescoço ensebados, homens e mulheres se grudavam, e alguns casais envolvidos, continuavam dançando sem perceber que o frege terminara. Sanfona, fole, pandeiro, triângulo e um bumbo furado, que servia apenas como cenário, pois não emitia qualquer som.
Nas manhãs de domingo, a feirinha comunitária. Macaxeira, farinha seca, rapadura, galinha da terra, peru, carne de boi, de porco e de bode. Fumo, cachaça e até comprimidos para qualquer meizinha.
De tarde, o local se transformava com a chegada do rádio Transglobe à bateria, para a transmissão do jogo do Maracanã ou Pacaembu nas vozes inconfundíveis de Jorge Cury, Doalcei Bueno de Camargo ou Fiori Gigliotti e ainda Waldir Amaral. Na Rádio Assunção Cearense, as vozes de Ivan Lima, José Santana, Jurandir Mitoso e alguns anos depois, de Paulino Rocha e Gomes Farias.
Na segunda-feira começava tudo de novo:
Coçar frieira na beirada da rede. Subir na árvore para fazer uma necessidade fisiológica tentando fugir dos porcos e das galinhas. Tomar banho nu no açude, jogando “galinha d´água”. Beber água fresca da quartinha. Surrão. Caganeira de chicote. Bicho de pé. Balançar na rede, tocando o pé na parede e escutar o ranger do armador. Pirão de farinha seca. Beber caldo no prato sem colher. Cheirar rapé e ao espirrar, dizer: “Armaria”. Cachimbo de barro. Amarrar sabugo de milho no pescoço do cachorro. Assoviar pra provocar o glu-glu do peru. Esperar o cântico do vem-vem e botar o angu para a graúna.
Matar a cobra e mostrar o pau. Pescar no açude com anzol de alfinete. Caçar e pegar “mané-mago” (libélula) nas árvores. Atiçar cachorro vira-lata pra pegar teiú no mato. Passar creolina para matar bicho no lombo do cavalo. Acender a lamparina e andar feito alma com a dita cuja no meio da noite.
Deitar na sombra da catingueira. Cortar unha das mãos e dos pés com canivete. Peidar dentro d´água na hora do banho no açude. Cangalha. Cambito. Chicote. Chifre pra aboio. Caranguejo uçá. Rapadura melada. Alfenim. Batida de cana. Manteiga de garrafa.
Leite mugido. Chiqueirar cabras e bodes. Camaleão. Rola-bosta. Cobra de duas cabeças. Besouro mangangá. Cavalo do cão. Sibite. Graúna. Bem-te-vi. Potó. Muçum de açude e de lagoa.
Debulhar milho e feijão. Plantar maniva. Raposa. Capote. Cabaça d´água. Terrina para água dos animais. Sal em pedra. Torrar café no alguidá. Mão-de-pilão. Pano de coar água no pote. Panariço. Gurgumio. Cajuína. Assar castanha no caco. Espinho de bananeira. Moita de mofumbo. Caminho d´água. Sabão Pavão. Óleo Pajeú. Grude na colher. Ferro à carvão para passar roupa. Anil e goma para camisa de cambraia de linho.
Viver. Cantar. Passar o anel. Brincar de manjô. Pião. Caçar passarinhos. Comer jumentinha. Montar a cavalo e campear o boi. Galo de campina. Alpargatas. Trempes. Pão sovado. Voo rasante da coruja. Rasga mortalha. Calango a galope. Cantoria. Cordel de mimeógrafo. Papel de embrulho. Lápis na orelha. Manteiga à retalho. Caderno de fiados. Bicada pra tomar banho e cusparada no pé do balcão. A “do Santo” na bicada. Tira-gosto de cajá embu. Sirigüela inchada. Arapuca pra pegar sabiá. Foice. Pedra de amolar machado. Cabaça d´água. Beber água na caneca no mesmo cantinho que a velha babona bebia.
O viver na roça que faz o verdadeiro pacote da saudade.