A maravilhosa “coada preta” vendida por Hugo
Durante vários anos, naquela casa, lembro bem – pois era um dos viventes, por ser neto dos “donos” – o café, fosse matinal, vespertino ou da noite, era “temperado” com pedaços de rapadura. Até então, não conhecíamos o açúcar branco.
A rapadura era transformada num melaço que, por sua vez ajudava na torrefação dos grãos do café. Aquele melaço era colocado num “tacho” (uma bacia de barro), onde eram depositados os grãos do café torrado. E separado por instantes. Às vezes era levado ao sol – nunca entendi por que, nem para que.
Horas depois, aquele café, junto com o melaço, era levado ao pilão, onde era socado e, dali transformado no “pó de café”. Uma delícia, diga-se de passagem, e é assim que se faz na roça ainda hoje.
Na preparação do café, uma lata dependurada num arame suspenso e amarrado ao teto, continha a quantidade necessária de água colocada para a fervura. Acrescentava-se dois ou até três pedaços de rapadura. Rapadura em pedaços passou a ser a sobremesa preferida das crianças, porque era a única – e era guardada na camarinha da Avó.
A mudança forçada de Queimadas para a capital, teve muito mais de “fuga” que outra coisa. A ausência das chuvas era acentuada prejudicando a produção da agricultura familiar, obrigando o abate dos animais domésticos criados em parceria com o proprietário das terras. Feijão e arroz guardados sob sete chaves para o novo plantio, eram retirados da despensa para o consumo diário, o mesmo acontecendo com a farinha de mandioca.
Quem viveu ou vive na roça sabe que abater uma galinha, um pato, um porco ou um caprino para consumo próprio, é algo que só se recorre em última instância. Ou, às vezes, para evitar que o animal morra por algum mal. As galinhas são sempre especiais, por porem ovos – o que significa “produzir” e aumentar a ninhada. Mas, há sempre aquele momento em que o abate se torna inevitável.
Naquele ano de chuvas raras e lavoura inexistente, só havia socorro mais fácil no consumo dos animais domésticos. Frango, quase sempre. Galinha, quase nunca. Frango não põe ovos. Galinha, sim.
Eis que chegou o dia da mudança. Um caminhão fretado de um amigo saiu da capital com destino a Queimadas, numa sexta-feira, por volta das 14 horas ou “quando o sol começou a esfriar”.
Na BR, um percurso aproximado de 50 Km que levaria, no máximo, sessenta minutos no percurso. Saindo da BR e pegando um trecho de estrada vicinal de aproximadamente 6 Km e, depois, mais uns 2 Km de uma picada aberta pelo avô para facilitar o acesso do caminhão. Na BR, nos 50 Km aproximados, o caminhão levou quase três horas. Depois, na estrada vicinal com cerca de 6 Km, levou mais de uma hora. Atolou na areia espessa em umas três ou quatro oportunidades e, para sair dali precisou do auxílio de paus e tábuas.
Maior tempo foi gasto na travessia da picada. Os pneus, ainda usando câmaras de ar, precisaram ser trocados em pelo menos quatro oportunidades, até que foi resolvido que a continuidade dependeria de que todos aqueles tocos da picada fossem arrancados. Mãos à obra!
A noite chegou e não esqueceu de trazer consigo, todas as dificuldades conhecidas. Agora o caminhão não tinha mais os estepes necessários para possíveis trocas. Tivemos que esperar o amanhecer do novo dia, quando todos os demais tocos foram finalmente arrancados, permitindo a chegada do caminhão até a casa da avó.
Com o dia claro e todos os problemas resolvidos, finalmente a mudança aconteceu. Tivemos, como primeiro novo endereço, uma casa em construção. Grande, com vários cômodos, mas sem água canalizada, sem instalação elétrica e sem portas ou janelas.
Era um novo horizonte que aparecia e se desenhava pela frente. Aos poucos, fomos colocando portas e janelas, sem esquecer que as despesas precisavam atender, também, a alimentação diária e as demais necessidades básicas. Todos precisavam trabalhar para ajudar. Era uma real oportunidade de recomeçar uma vida nova.
As crianças precisavam ir à escola. E foram.
Horácio, o mais velho, continuou os estudos, passando a frequentar o Ginásio Municipal; Elias, o segundo, preferiu trabalhar, enquanto chegava a época de servir ao Exército. Preferiu a Aeronáutica.
Hugo, o terceiro, foi matriculado num Grupo Escolar.
Frequentava a escola no período matinal. Chegava de volta à casa, invariavelmente, após as primeiras horas da tarde. Dormia, acordava e estudava para resolver as tarefas escolares.
À medida que o tempo passava, as coisas se acomodavam e os problemas antigos iam sendo resolvidos. Mas nunca deixavam de aparecer os novos.
Eis que, certa tarde, Hugo conheceu um vizinho e acabou por se tornar amigo. O novo amigo tinha pai em boa situação financeira e algumas manias prontamente atendidas. Uma dessas era colecionar figurinhas, num álbum. Foi ali, no folhear do álbum, que nasceu o interesse de Hugo em também comprar um álbum e colecionar as figurinhas.
Mas, de onde sairia o dinheiro?
Não demorou muito, e a engenharia infantil funcionou.
Hugo precisava “fazer dinheiro” de alguma forma. Quebrou o cofrinho de cerâmica, contou todas as moedas amealhadas por meses. Mas ainda não era chegada a hora de comprar o álbum, muito menos as figurinhas.
Resolveu empreender. Comprou dois cocos e duas rapaduras. Fez cocadas e vendeu. Ganhou o apoio e o incentivo da mãe. Vendeu todas as cocadas.
Dois dias depois repetiu a operação. Separou o “lucro”.
E assim, foi fazendo, até que, com o “lucro” que tivera, finalmente conseguiu comprar o álbum. E ainda ganhou um pacote de figurinhas de bônus.
Hugo conseguia vender todas as cocadas, todos os dias.
Todos gostavam das “cocadas pretas”.
Hugo, de frente com uma necessidade, enfrentou o problema com muita disposição, contando com apoio dos pais.
Ali nascia mais um “Rei da Cocada Preta”.