A falta de recursos financeiros destinados para o setor cultural por conta da pandemia fez a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal anunciar do cancelamento da 53ª edição do Festival de Cinema de Brasília. Em entrevista concedida, ontem, ao CB.Poder — parceria do Correio com a TV Brasília —, o secretário de Cultura Bartolomeu Rodrigues explicou a situação. Além disso, ele fala sobre a questão do setor cultural na pandemia, com foco nos editais liberados para a classe artística.
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi cancelado. É um dos festivais mais importantes do país e só deixou de acontecer durante a ditadura militar, em três edições. Essa seria a 53ª edição. O que aconteceu, secretário?
É preciso que fique bem claro o seguinte: nós não estamos fazendo isso pela nossa vontade, muito pelo contrário. Estou extremamente frustrado, nós estávamos trabalhando intensamente... Estamos trabalhando intensamente, porque eu ainda não joguei a toalha. E, na verdade, antecipei o posicionamento porque nosso deadline esgotou e os recursos destinados para o Festival foram alocados para outras áreas. Acho que a gente está vivendo um momento difícil. Foi me pedido, inclusive, compreensão e entendo perfeitamente. Estamos no meio de uma pandemia que a gente não sabe como vai acabar, ainda estamos trabalhando com uma doença misteriosa. Toda a atenção e dedicação do governo deve ser dada para salvar vidas, isso é ponto pacífico. Mas, ao mesmo tempo, nós temos um calendário apertado para tomar decisões importantes, porque o Festival é oficial, no sentido de ser gerido e organizado pelo Estado. Eu preciso começar com alguns procedimentos jurídicos e legais e esse tempo se exauriu. Então, precisei me antecipar e colocar essa situação para que servisse de alerta, no sentido de que não temos condições efetivas do ponto de vista financeiro de promover um festival dessa magnitude, da importância que esse festival tem. Ele repercute internacionalmente e é um festival construído pela sociedade, é um Patrimônio de Brasília. Tenho recebido muitas manifestações de associações, entidades, pessoas do mundo cultural e de fora que estão me colocando de pé no sentido de não deixar o festival morrer. E a minha resposta é: não vamos deixar ele morrer. Vamos dar as mãos e buscar criatividade, formas de viabilizar o festival. Acho que ainda é possível.
Havia um esforço de economia da Secretaria. O carnaval, por exemplo, quando anunciaram aqueles shows grandes e depois voltaram atrás com a ideia de economizar dinheiro e o aniversário de Brasília, não por isso, mas pela questão da pandemia, que teve as principais atividades canceladas. Essa economia que foi feita, com esse tipo de evento, não poderia ser usada para o Festival? Mesmo assim não foi o suficiente?
A gente entra agora em um outro aspecto da discussão. No meu ponto de vista, acho que é papel do Estado fomentar e incentivar alguns setores vulneráveis. A cultura tem que ser encarada como um setor econômico. Foi a primeira a sentir o impacto dessa pandemia e vai ser a última a sair. Nós, da Secretaria de Cultura, juntamente com o Governo do Distrito Federal, tomamos algumas iniciativas que estão em curso. Lançamos editais para utilizar recursos do FAC visando socorro emergencial para os agentes culturais. Nesse caso, do Festival de Brasília, é possível fazer com a metade do que estava previsto. Espero que haja sensibilidade. Estou confiante, depois dessas reações todas, que aconteça uma reversão da situação. Conclamo, inclusive, a classe artística, para que procuremos uma saída. Temos planejado e formatado um festival que não causaria embaraço à situação de enfrentamento do coronavírus. Estávamos com um modelo híbrido e instigante em todos os sentidos.
Como seria? Qual a ideia? Fazer no Cine Drive-In?
Foi a primeira opção que buscamos. Olhando, inclusive, as soluções que outros festivais internacionais estão buscando, vimos que o ideal seria migrar para as plataformas virtuais. Mas nós temos um diferencial único da América Latina, que é o Cine Drive-In, onde é possível realizar um festival híbrido e presencial também. Tivemos, por conta disso, uma série de desafios. Em caso de realização presencial, temos que considerar até aspectos meteorológicos. Não poderia ser em novembro por ser um mês de chuva, setembro estaria perto demais e talvez outubro fosse o viável. Então, tudo isso, junto com o calendário apertado, fez com que o anúncio do cancelamento fosse antecipado. Lançar um chamamento público, um edital, que tem complicações jurídicas, e depois voltar atrás é complicado. E, para dar início ao processo, precisamos do mínimo de recurso. As coisas não caem do céu.
Existe um discurso em detrimento da Cultura, com críticas aos artistas. Muitas pessoas dizem que não é para gastar dinheiro com essa classe artística. Cancelar o Festival, em um momento como este, não passa a imagem de que o GDF está colocando a Cultura para escanteio?
Não. Nunca vamos deixar essa bandeira cair, a cultura tem prioridade. Nós não somos população se deixarmos a cultura em segundo plano. A cultura é fundamental, inclusive para a retomada do desenvolvimento, ela é alavancadora desse processo. Estamos solidários e na luta contra a covid-19, mas temos que compreender que a vida está seguindo para muita gente e, no setor cultural, o impacto da crise econômica está sendo muito forte. Tem que acontecer um balanceamento e muitas economias no mundo inteiro, inclusive, estão mostrando isso. Veja nos Estados Unidos, o país mais afetado, onde os empregos estão se recuperando. Isso ocorre por conta de algum movimento que permita o enfrentamento da crise sem o desastre total da economia. Se não for assim, quando sairmos da crise sanitária, teremos uma crise pior. O investimento é como um alento para que o setor não caia no abismo.
Quais alternativas você vê hoje para que o Festival seja realizado? Existe espaço para o apoio da
iniciativa privada?
Tem sim, nós queremos, é um apelo que eu faço. O problema é que a iniciativa privada também está passando por um momento muito peculiar. Para a iniciativa privada chegar, ela precisa saber se vai acontecer o Festival. Para exemplificar, temos que fazer uma contratação de empresas privadas que vão ajudar o Estado a gerir o Festival e que vão buscar recursos. Mas, para isso, precisamos de uma segurança financeira.
Como está a situação dos editais que foram lançados? Com essa crise financeira, eles correm risco ou não?
É uma boa pergunta. Eu não quero contar com nenhum risco, até porque são recursos protegidos por uma lei orgânica da cultura do Distrito Federal. Devemos nos orgulhar de ter uma das legislaturas mais protetivas com relação à cultura, construída pela comunidade cultural. Os recursos que nós destinamos para o edital são protegidos, então estou com o coração sossegado. Mas, sendo muito franco agora, recentemente foi aprovado um socorro emergencial (Lei Aldir Blanc) pelo Congresso, rapidamente aprovado pela Câmara e pelo Senado, mas que depende de sanção presidencial e de muitas negociações. Vamos esperar por isso até quando? Não sei até que ponto haverá sensibilidade de colocar esses recursos à disposição dos estados e municípios brasileiros. O Distrito Federal está pronto para receber, em vantagem, por ter um Fundo de Apoio à Cultura constituído.
Essa questão financeira também é importante pensando na Secretaria de Cultura como conjunto. Como fazer para que ela não seja esvaziada, como manter as ações em caminho mesmo sem ter recursos para usar?
Estamos enfrentando esse desafio e dando respostas efetivas. Estamos ousando. O Distrito Federal foi um local respondeu efetivamente ao auxílio emergencial. Claro que não na velocidade que o setor precisa, mas o que a nossa equipe pôde fazer para tornar os editais mais rápidos e o acesso mais democratizado, nós fizemos. Lançamos o edital FAC Regionalizado recentemente, em valor superior ao de edições passadas, para sinalizar que nós não perdemos a atenção nesse setor. Nós estamos juntos, conversando com todos os segmentos e preocupado, sobretudo, com os setores mais vulneráveis. Não estamos preocupados com o grande artista ou com o grande evento, mas com aquele artista que sai com um violão para tocar em um bar mas encontra o bar fechado e fica sem dinheiro para colocar comida dentro de casa.
As alternativas pensadas para o momento, como as lives, não atingem essa parte específica da classe cultural, servem para artistas renomados, certo?
É um fenômeno para ser analisado com mais cuidado. Muita gente busca soluções emergenciais e algumas dão certo. Estamos com um edital aberto para quadrilhas juninas e, como elas não podem se apresentar, o auxílio se dá por meio de premiações com recursos de emenda parlamentar federal. Fizemos, recentemente, um programa chamado Serenatas de Abril, com emenda parlamentar local. Mas esse recurso é do orçamento do Governo Federal. O dinheiro continua saindo de um cofre só.
Existe um prazo para que o dinheiro dos editais emergenciais seja liberado?
Não. Temos o edital FAC Conecta Cultura, que trata de propostas de apresentações virtuais e o FAC Premiação. A previsão da liberação de recursos para atender essas demandas é entre julho e agosto.
Os recursos previstos para a realização do Festival eram em torno de R$ 3 milhões. Dá mesmo para fazer com a metade?
É… em uma situação, chorando, talvez eu diria para você que sim. Estamos com um modelo diferente. Dando essa perspectiva que pode acontecer o festival, talvez apareça alguma iniciativa privada para nos ajudar. Mas, de qualquer forma, acredito que podemos reduzir muito esse custo, porque vamos abrir mão de muitas coisas. É bom ressaltar que estamos em contatos muito promissores com plataformas gigantes do mercado que querem abraçar um projeto como o Festival de Cinema de Brasília. Claro que isso gera outra discussão com os mais saudosistas, que gostam do cinema em tela, com o barulho da máquina de rolo rodando, mas faz parte e é necessário dentro da nova realidade. Dessa discussão eu não tenho medo, ela é bem-vinda. O pau vai quebrar, mas é ótimo. Brasília tem a oportunidade de ser vanguarda, como sempre foi. É uma chance de lançar uma discussão, ouso dizer, de nível mundial. Outros festivais pelo mundo também estão sofrendo com o mesmo problema e temos a oportunidade de oferecer ao mundo um modelo diferenciado. Tudo está em discussão hoje.
Como está a discussão do pós-pandemia? Isso está sendo debatido?
Estamos discutindo a reabertura dos museus. Brasília conta com museus a céu aberto como o Catetinho e o Museu Vivo da Memória Candanga que poderiam estar abertos. É meu ponto de vista, mas com precaução. Não queremos responder, depois, por termos escancarado as portas sem planejamento. Estamos fazendo um estudo de protocolo, que deve ficar pronto no final desta semana, para averiguar essa possibilidade.
Como está o processo de reforma do Teatro Nacional?
Mesmo em meio à pandemia, a discussão e os trabalhos voltados para a reabertura do Teatro Nacional avançaram muito. Estamos desenhando uma solução definitiva para dar início, em breve. Costumo dizer que desatamos vários nós cegos e estamos no último nó da história. Vai dar certo e o Teatro Nacional será entregue, logo menos, para a população de Brasília.
*Estagiário sob a supervisão de Igor Silveira