17 de agosto de 2020 | 05h01
O destino parecia ser o limbo - a atriz Helena Cerello preparava, ao lado de Cristiana Britto, uma adaptação para o teatro do livro O Peso do Pássaro Morto (Nós) quando veio o redemoinho provocado pela pandemia do coronavírus, que virou o mundo da arte de ponta-cabeça, estagnando o mercado, em março. Helena buscou, então, o isolamento social em um sítio, a 200 km de São Paulo, onde continuou o delicado trabalho de versão - a obra de Aline Bei usa a poesia para retratar a história da menina que padece para se transformar em mulher.
“Eu construía as cenas ao mesmo tempo em que filmava - quando ouvia, percebia que era algo forte”, conta Helena que, cansada de dialogar consigo mesma, convidou o diretor Nelson Baskerville em abril, para avaliar o material e, quem sabe, entrar no projeto. O encenador logo percebeu que a narrativa poderosa de Aline era transposta de maneira sensível pela atriz para a linguagem teatral, bastando organizar as ideias e dar uma identidade ao espetáculo.
O resultado, que Helena chama de “experimento teatral”, poderá ser conferido pelo público a partir do sábado, dia 22, às 16h, quando O Peso do Pássaro Morto estará disponível online na plataforma digital Sympla, por meio do aplicativo Zoom. Trata-se de um trabalho surpreendente, um avanço em relação às montagens que inundaram o território do streaming tão logo a pandemia fechou as portas dos teatros, mas, cuja dedicação artística era um consolo diante delimitações técnicas, que dificultavam o entendimento desses trabalhos como teatral.
A obra de Aline Bei, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos, traz um dolorido relato sobre as perdas na vida de uma mulher entre seus 8 e 52 anos, período em que a personagem aprende a suportar dores que as circunstâncias indicam ser impossível superar - desde a morte de uma amiga até o estupro que sofre de um namorado que, por sua vez, resulta no nascimento de um filho, Lucas, que se manterá sempre distante.
Ao fazer a adaptação, Helena procurou manter o espírito da escrita. “Foi extremamente doloroso fazer os cortes porque o livro é maravilhoso - nosso maior trunfo é a palavra”, comenta ela, que recebeu total liberdade da autora na construção de sua versão. Logo começou a filmar e, necessitada de outra avaliação, pediu para Baskerville. “As imagens eram muito simbólicas, mas tremiam muito, pois era Helena quem gravava”, conta o encenador que, além de determinar as diversas camadas do texto (afinal, a atriz vive a mulher desde a meninice até a velhice), ajustou o posicionamento do celular, a fim de garantir a estabilidade da imagem.
Detalhe: Baskerville estava em seu apartamento, no bairro paulistano da Aclimação, enquanto Helena continuava no sítio próximo à cidade de São Carlos, local de paisagens exuberantes que logo foram incorporadas ao trabalho. Os ensaios, portanto, ocorriam diariamente e online, com os imprevistos habituais acontecendo, como a entrada do cachorro em cena. “Helena fala com ele e também com os filhos, que vêm pedir comida - nesse momento, paramos o ensaio para que ela possa fazer o lanche”, diverte-se Baskerville. “Parece um filme de Fellini.”
O projeto ganhou contornos mais artísticos com a chegada de Daniel Maia, responsável pela trilha sonora original. Ao assistir a um ensaio, percebeu que Helena cumpria todas as obrigações técnicas, como manipular o celular, cuidar da iluminação além de interpretar. “Sugeri que alguns trechos da história fossem previamente gravados e, durante o espetáculo, fossem exibidos alternando com os momentos ao vivo”, conta Maia, que ainda retrabalhou os vídeos, conferindo uma nova textura, que acentua a sensibilidade das cenas.
As cenas pré-filmadas contam com a luz natural do ambiente externo do sítio, e abordam diferentes períodos da vida da protagonista. A escolha se deu em função da tecnologia e das possibilidades de sinal do Wi-Fi e celular no local.
Na semana passada, o Estadão acompanhou um dos primeiros ensaios completos do espetáculo, no apartamento de Baskerville. Na tela do computador, além de Helena, estavam ainda Maia, a jornalista Fernanda Teixeira e Aline Bei, que assistia pela primeira vez a adaptação de sua obra. Foi um choque - “Nem parece que foi escrito por mim, está muito melhor”, comentou a escritora, em lágrimas. “Tem peso e leveza, um tom balanceado que procurei equilibrar no romance.”
De fato, durante uma hora, o espectador acompanha desde as singelezas cotidianas até as tragédias que persistem, uma geração após a outra, na vida daquela mulher, cuja evolução é notável graças à interpretação de Helena que, além de revelar o envelhecimento pela variação de sua postura corporal, cria as vozes dos diversos personagens - e permite que o público olhe, enternecido, para as suas dores. Os ingressos podem ser comprados em www.sympla.com.br/ opesodopassaromorto.
“Há uma alquimia, uma poesia nas palavras de Aline que convida o leitor a mergulhar fundo e ficar ali um tempo, a fim de se sentir”
Helena Cerello, atriz
“Isso que fazemos não é cinema, nem televisão, nem teatro, e é fascinante descobrir novas formas de se comunicar”
Nelson Baskerville, diretor
“Helena envelhece junto com a personagem. E em um tom baixo, íntimo, que guarda segredos. A essência da minha obra está ali”
Aline Bei, escritora
Quando a pandemia do novo coronavírus se instalou no Brasil (e, em especial, em São Paulo), Darson Ribeiro, criador e gestor do Teatro-D, foi obrigado a repensar seus planos para manter ativo o espaço recém inaugurado. Assim, criou um espetáculo para ser encenado no estacionamento do teatro, que fica no hipermercado Extra do Itaim. E, para que não corra risco de contágio, o público assiste de dentro de seus carros.
Chamado de “happening” pelo seu autor, Amor no Drive-In - Por Favor, Não Me Covid é ambientado em um país fictício, logo depois da pandemia. Maria Clorokyna (interpretada por Vanessa Goulartt) é uma atriz recém-formada que não teve a chance de pisar em um palco, pois todos ficaram fechados durante vários meses. Assim, quando começa a perambular entre os veículos estacionados, ela surge, ao som do tema do filme ...E o Vento Levou, usando máscara.
“Ai, meu Deus, e agora? O que é que eu vou fazer pra disfarçar que eu tava numa festa clandestina?”, diz ela, ao entrar, dando o tom de paródia do espetáculo, que se reforça com a chegada de Fakenewsson da Silva (Ken Kadow), ator que quase a atropela em pleno estacionamento. É o início de um embate em que a aspirante a atriz se envolve em um questionamento sobre o que é certo e errado.
“A peça é literalmente um deboche a tudo que estamos vendo, ouvindo e, obrigatoriamente ou não, vivendo, cujo objetivo maior é justamente sacudir as estruturas que, infelizmente, por uma pandemia, se veem superadas. O espectador deixa de ser simplesmente observador e passa a ser celebrante, juntamente com o idealizador, elenco, e equipe técnica”, explica o diretor, que teve a ideia do espetáculo no final de março, quando o governador João Dória anunciou o fechamento das salas de teatro e cinema.
Pela situação crítica, Ribeiro logo descobriu qual seria a linguagem ideal. “O happening floresceu no final dos anos 1950 na Europa e EUA e caracterizou-se principalmente por alguns movimentos de contestação radical a alguns outros gêneros, como o Dadaísmo e o Surrealismo, unindo a uma linguagem que envolve, quase obrigatoriamente, a participação ativa e física do espectador - por isso não podia ser outro gênero”, afirma. E, no caso, o espectador aciona os faróis de seu carro, além de buzinar, acionar o limpador de para-brisas, pisca-alerta e também a luz do celular.
O ingresso (R$ 120 por carro com até quatro pessoas) é vendido em bileto.sympla.com.br/ event/65949.