O PÁROCO
Coelho Neto
(Grafia original)
A noite, esparzida de astros, silenciosa e morna, corria triste, sem os rumores dos outros anos, quando era vivo o venerando pároco centenário que fazia despertar a aldeia religiosa com a voz sonora do grande sino e com os repiques festivos das campanilhas.
Ia passar despercebida a grande hora da alva redentora em que Jesus nasceu. Campos desertos, choças apagadas, eiras emudecidas; apenas um ou outro campônio, saudoso do velho tempo, abria a porta da cabana para olhar os muros brancos do presbitério vazio, ou passava por entre as ramagens sob o esplendor infinito da noite constelada, como o espectro errante da alegria extinta, tocando tristemente a viola.
O luar escorria pelas árvores alvo e diáfano, tornando de prata a água lisa de um lago, onde o gado descia a beber. A igreja fechada, branca, muito branca, era como uma miragem feita pela claridade do luar. Mas que diferença dos outros anos! Àquela hora, as portas escancaravam-se exalando o aroma santificante dos turíbulos, e o campo enchia-se com o clangor dos hinos do povo que saudava, no berço de palhas do presepe, o louro Jesus nascido, deitado, com simplicidade, entre a vaca e o jumento. Que diferença dos outros anos! Quem tivesse ouvido a palavra trêmula do velho pároco, narrando, ao fim da missa, diante do pequeno estábulo, o mistério de Belém: como nascera de Maria Sempre Virgem numa creche, para exemplo dos homens, Jesus, o Rei dos Reis, a Misericórdia Suprema – teria saudades diante de tamanha tristeza.
Nos currais fechados, o gado, adivinhando a lúcida manhã, mugia profundamente. No céu puríssimo resplandecia radiosa a estrela-d’alva.
Um galo solitário cantou num quintalejo; e, súbito, o som profundo e grave do grande sino quebrou o silêncio melancólico da noite natalícia, e logo romperam, em bimbalhada estrídula, todas as campanilhas, justamente como nos outros anos quando era vivo o venerando pároco…
De repente abriram-se as portas das cabanas; e campônios atônitos apareceram nas soleiras em leves roupas, as cabeças nuas, com lanternas erguidas alumiando a noite.
As portas da igreja, abertas de par em par, deixavam ver o interior resplendente de luzes.
O espanto foi grande entre os rústicos, e nenhum ousou aventurar um passo, posto que os sinos continuassem a soar festivamente.
Foi um boiadeiro quem primeiro falou:
– Deve ser alguém da vila que faz soar à missa para trazer-nos recordações do pároco, fazendo que não passe em silêncio a noite santa de Deus!
Os sinos repicavam a mais e mais, e já, em frente da igreja, havia uma esteira de luz dourada que os círios alastravam.
– Se fôssemos? – propôs o boiadeiro.
Voltaram todos em busca dos gabões e dos cajados, e, reunindo-se, com os olhos sempre fitos na igreja iluminada, foram seguindo em grupo cerrado, lentos, tímidos, parando de instante a instante, assustando-se ao mínimo ruído.
Ia à frente o boiadeiro, batendo fortemente com o cajado para animar a turba.
Longe, pelos quintais, ao frescor da madrugada, cantavam mais vivamente os galos.
De repente, um grito atroou no grupo: o boiadeiro, que ia à frente, caíra de bruços junto às escadas da igreja, clamando. Nem um só homem atreveu-se a avançar para acudi-lo: e só quando o viram erguer-se com os braços alçados, brandindo o cajado grosseiro, foram caminhando.
– O pároco! O pároco! – bradava o boiadeiro, subindo tremulamente os degraus. E os homens, que haviam corrido, extáticos, parados, balbuciavam, com os olhos postos no altar da igreja: – O pároco que morreu! O pároco!
Começava a missa de Natal.
Junto ao altar, revestido dos hábitos religiosos, estava um velhinho pálido, inclinado sobre o livro santo, as mãos juntas, orando. À sua esquerda, fúlgido, com um esplendor sideral, um anjo de asas cerradas, ajoelhado, agitava um turíbulo; outro, à direita, todo num grande nimbo de luz, acolitava.
Nada se ouvia. De vez em vez o oficiante voltava-se para abençoar os campônios, e as suas pupilas fulguravam.A pouco e pouco foi-se enchendo o templo; havia montes de cajados à porta.
Os anjos passavam de um lado para outro lado, sem tocar o solo, aereamente, num adejo sutil.
Finda a cerimônia, a bênção do sacerdote caiu sobre todas as cabeças; e ele, lentamente, como nos outros anos, desceu para o meio da turba, e, flanqueado pelos anjos, fez a prédica consoladora, narrando o poema da simplicidade, paternalmente, com a palavra pausada e meiga. Por fim, passando pelos grupos, mais pálido do que o luar que ainda alumiava, ia dando a beijar a mão gelada; e viram todos o santo e venerando padre alçar os braços em ofertório; depois voltou-se, e ficou muito tempo a olhar a vila; e uma lágrima silenciosa desceu-lhe pela face branca. Ajoelhou-se, curvando a fronte, e todos imitaram-no.
Quando os campônios levantaram os olhos, os sinos tinham emudecido no campanário, e, pelas tábuas do templo, havia estrias douradas de sol. O pároco e os anjos haviam desaparecido.Entreolharam-se os campônios; e o boiadeiro, tomando o cajado, indagou:
– De onde terá vindo? De onde terá vindo?
– Do túmulo, decerto! – disse uma velha a tremer.
– Do céu – disse um pastorinho; – não há anjos na terra.
– Mas ele chorou – disse o boiadeiro -, e não há lágrimas no céu.
– Saudades talvez! – falou alguém no grupo.
Então, o boiadeiro, fazendo o sinal-da-cruz, suspirou:
– Se há saudades no céu, bem triste deve ser a vida eterna!
– Bem triste! – suspiraram todos.
E o boiadeiro ajuntou:
– Bem disse ele, antes de expirar, que havia de estar sempre conosco, acompanhando-nos em nossas dores e em nossas alegrias! Bem o disse ele antes de expirar. . .
– Sempre estará conosco protegendo-nos à nossa mesa, à beira de nosso leito, junto ao sepulcro em que ficarmos! – disse um sertanejo.
E todos, movidos pelo mesmo sentimento, levantaram para o céu os olhos agradecidos. A manhã de Jesus resplandecia .
……………
E eis por que não tem pároco a Igreja de São José do Monte: o presbitério é o céu, e o pároco é sempre o mesmo, que desce em espírito, para abençoar as almas e as campinas.