O NÃO-CONSERVADOR
A. C. Dib
Em muitas de minhas publicações no Facebook criticando o Presidente Bolsonaro, um amigo costumava contestar ou refutar o conteúdo da publicação contrapondo-lhe mazelas atribuídas ao Lula e à Dilma. Assim, se eu falasse em equívocos, ele apontava equívocos análogos de Lula e Dilma; se eu falasse em escândalos, ele citava escândalos piores dos governos Lula e Dilma; se eu falasse da barriga do Bolsonaro, ele apontava a barriga do Lula e a da Dilma.
― Por que você não fala da barriga do Lula e a da dona Dilma?
Certa vez, não resisti e perguntei:
― Mas, afinal, quem é Lula? Quem é Dilma?
Nada mais comum que associar à esquerda a oposição ao governo Bolsonaro. Inadmissível, inconcebível, impensável que um liberal na política, homem de centro ― conservador, mesmo, em questão de moral, tradição e costumes ― venha a firmar oposição a Bolsonaro, baluarte do conservadorismo. “Se opor a Bolsonaro, só mesmo sendo um extremista de esquerda”. E quanto mais duro o opositor, maior esquerdista seria. Escandaloso que um conservador não goste de Bolsonaro. Seria o mesmo que dar um tiro no próprio pé, ou algo como uma auto-oposição. Ledo engano associar o conservadorismo a extremismos, a ditaduras de direita, a autoritarismos.
O conservadorismo, grosso modo, tem como características gerais a defesa da tradição, das particularidades nacionais, regionais e locais, da autoridade, além de posicionar-se contra o coletivismo, o individualismo e o racionalismo político.
Edmund Burke, tido como o primeiro teórico político do pensamento estritamente conservador, em 1790, quando a Revolução Francesa ainda prometia uma utopia sem sangue, previu, em sua Reflections on the Revolution in France, que, com a rejeição radical e abrupta da tradição e de valores herdados, a revolução descambaria para o terror e para a ditadura. Dito e feito.
No Brasil Império, notável foi a influência do Partido Conservador no processo de abolição da escravidão. Sob a gestão do Conservador Eusébio de Queirós, Ministro da Justiça, a “Lei Eusébio de Queirós”, de 1850, proibiu o tráfico negreiro para o Brasil. Também ao Partido Conservador devemos a “Lei do Ventre Livre”, ou “Lei Rio Branco”. O conservador Primeiro-Ministro João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, conseguiu a aprovação da chamada “Lei dos Sexagenários”. Finalmente, na gestão do Gabinete Conservador de João Alfredo Correia de Oliveira foi promulgada a Lei Áurea. O apoio à abolição da escravatura custou a Pedro II sua coroa, eis que os grandes latifundiários escravagistas, em represália, apoiaram o golpe de Estado que proclamou a República brasileira.
Por essa época, o Presidente americano Abraham Lincoln ― umas das referências históricas de democracia e liberdade ― colocava abaixo, a duras penas, a escravidão naquela República. Vale lembrar que Lincoln pertencia ao Partido Republicano, associado ao conservadorismo na política norte-americana.
Voltando ao Brasil, temos memoráveis exemplos de conservadores que se consagraram como grandes e destemidos combatentes da democracia, de seus valores e ideais. O constitucionalista e político gaúcho Paulo Brossard, com seu chapéu panamá, sua gravata borboleta, bengala e relógio de algibeira, antes mesmo de discursar, já revelava fisicamente seu conservadorismo. No Rio Grande do Sul, Brossard foi tenaz adversário político dos esquerdistas João Goulart ― o Jango ― e do cunhado deste, Leonel Brizola. No Congresso Nacional, instituído o regime ditatorial de 1964, filiou-se ao MDB, partido de oposição, destacando-se por sua combatividade na defesa da democracia. Foi o único deputado federal a se pronunciar da tribuna da Câmara contra a eleição indireta para a presidência da República, no final de outubro de 1969, do General Médici. Em uma das mais belas páginas da história política brasileira, discursou analisando o sentido da palavra “eleger”: “…Eleger, de eligere, quer dizer escolher, separar, estremar, nomear, preferir, selecionar, designar. E no caso não se trata de eleger, porque a eleição já foi feita”.
Outro notório conservador, o político mineiro Tancredo Neves, foi outra referência brasileira na defesa dos mais singelos e caros ideais democráticos. Como principais características da longeva atuação política de Tancredo Neves, temos: a defesa heroica e intransigente da democracia; a grande habilidade e talento como articulador político e conciliador de opostos; a extrema lealdade a todos os Presidentes da República com quem atuou. No campo da lealdade e da coerência política, Tancredo foi Ministro da Justiça de Getúlio Vargas ― não no Estado Novo, mas no governo democrático de Vargas ―, tendo Vargas morrido em seus braços. Apoiou o governo do Presidente Juscelino Kubitschek, conservando apoio e amizade após a cassação, o exílio e a prisão do criador de Brasília. E, por fim, com a renúncia de Jânio Quadros, articulou a implantação do parlamentarismo, para evitar a ruptura institucional prenunciada frente à iminente posse de Jango na Presidência, sendo nomeado Primeiro Ministro por Jango. Posteriormente, reintroduzido o sistema presidencialista, foi líder do governo Jango na Câmara dos Deputados, sendo dos poucos que foram ao Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para se despedir do ex-presidente quando este partiu para o exílio no Uruguai. Antes disso, porém, quando o Presidente da Câmara, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República, Tancredo, lembrando que o Presidente Goulart ainda se achava em território nacional, dirigindo-se a Moura Andrade, berrou a plenos pulmões: “Canalha! Canalha!”. Foi o único congressista, membro do PSD, a não votar, em 11 de abril de 1964, no Marechal Castelo Branco, na primeira eleição indireta de Presidente da República produzida no regime militar.
O advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto, conservador apaixonado e fervoroso militante católico, ao longo de toda sua vida pública e profissional, sempre conciliou seus ideais conservadores com princípios constitucionais clássicos de direitos humanos e direitos e garantias individuais dos cidadãos. Na defesa aguerrida de presos e perseguidos políticos nos regimes de exceção instaurados no Brasil ― Estado Novo e regime militar de 1964 ― ele, conservador que era, converteu-se em herói das esquerdas. Advogado de Luís Carlos Prestes na ditadura de Vargas, em particular travou acalorados debates com seu cliente, tentando convertê-lo ao cristianismo, enquanto o Cavaleiro da Esperança forcejava em doutriná-lo ao comunismo.
Paulo Brossard, Tancredo Neves e Sobral Pinto foram conservadores que nunca se deixaram seduzir, iludir ou deslumbrar pelas promessas de ditadores direitistas e de regimes autoritários de direita. Conciliaram sempre o ideal conservador com os valores democráticos de liberdade, igualdade, eleições livres e diretas, respeito às minorias, direitos humanos e garantias individuais.
Assim, associar o conservadorismo a regimes fortes de direita, ao autoritarismo de extrema direita e a ditaduras direitistas é manifesto equívoco praticado por quem desconhece a história e desconhece a doutrina e a prática política.
Claro que o conservadorismo respeita a hierarquia social. Não obstante, na década de oitenta do século pretérito, Ronald Reagan e Margaret Thatcher atrelaram fortemente o conservadorismo ao liberalismo econômico. Perdura, nos dias presentes, tal modelo conservador umbilicalmente vinculado ao livre mercado. A mobilidade social se vê, portanto, prestigiada no conservadorismo, embasada no trabalho duro, na criatividade e no talento pessoal do empreendedor.
Não comungo do pensamento de petistas que classificam Bolsonaro como fascista. Creio que não chega a tanto.
Fascismo é uma ideologia política de cunho totalitário que tem como características principais um nacionalismo extremado; desprezo absoluto pela democracia representativa e pela liberdade política e econômica; um líder forte e militarista; emprego da violência contra opositores, além de empregá-la, juntamente com a guerra e com o imperialismo, como meios legítimos de autoafirmação nacional; economia mista, com adoção de políticas econômicas protecionistas e intervencionistas, como meio de conquista de autossuficiência econômica do país; e forte arregimentação da sociedade, com subordinação de interesses individuais aos interesses da nação.
Conforme disse, não acredito que Bolsonaro seja um fascista. Mas se fascista não é, também não é um político claramente identificado com os valores democráticos. Igualmente, Bolsonaro não é um conservador autêntico, parecendo-se mais um radical com palpáveis tendências autoritárias. Seu passado e seu presente depõem contra ele. Causa espécie sua peremptória intolerância a oposicionistas e a matérias jornalísticas que lhe sejam desfavoráveis. Bolsonaro toma as críticas como questões pessoais e reage mal atacando seus críticos. Também sua característica agressividade, sua truculência e seu talento para polêmicas não se coadunam com o conservadorismo. Uma das principais características do conservador é a prudência. Conservador raiz não se envolve em debates estéreis, não se comporta de modo temerário, não se mete em aventuras. Ainda que tenha jurado lealdade ao regime democrático e à Carta de 1988 antes de sua posse, Bolsonaro não inspira confiança. Seus fanáticos apoiadores falam em golpe de estado, nas redes sociais, como uma panaceia redentora do Brasil. Pregam o golpe e defendem ditaduras como quem sugere um bom filme. De igual forma, preocupa e choca declarações de Eduardo Bolsonaro ― reveladoras de extremo desamor e desprezo pela democracia ― sugerindo golpe de estado, seja pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal, seja pela possível reimplantação do Ato Institucional número 5. Seguramente, a vocação ― e formação ― autoritária do jovem deputado tem por espelho um paradigma, um ídolo inspirador, um mito.
Portanto, que os confrades liberais e os amigos conservadores firmem oposição a Bolsonaro, não deixando à esquerda o protagonismo e a primazia de tal atuação. Oposição responsável, séria, construtiva, apoiando os acertos e criticando com firmeza os desacertos, na defesa vigilante, altiva e ingente dos sagrados princípios da democracia.