O ESTADO TEOCRÁTICO DE DIREITO
A. C. Dib
O quadro aqui desenhado é de pura ficção científica.
Pandemia de coronavírus. Brasileiros em suas casas, amargando quarentena. Escolas fechadas, serviços públicos parcialmente desmobilizados, transportes públicos semi-interrompidos, concentração de pessoas desautorizada, comércio quase que desativado, decretação de Estado de Calamidade Pública, ruas desertas, economia em recessão, mundo caótico e perplexo. É decretado toque de recolher.
Bolsonaro vai à televisão e ao rádio, em cadeia nacional. Aparece de máscara cirúrgica ― ajeita, bota, tira, recoloca. Em decorrência da gravíssima peste que ameaça dizimar a população brasileira, assume, emergencialmente, poderes excepcionais e extraordinários.
É decretado recesso do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. A vigência da Constituição Federal de 1988 é suspensa. Tanques de guerra nas ruas das principais Capitais. O Ato Institucional nº 5 volta a ser editado, atualizado. Partidos Políticos são dissolvidos. A concessão de funcionamento da Rede Globo de Televisão é revogada.
Bolsonaro declara que, agora sim, poderá governar sem amarras, conduzindo o Brasil à grandeza que o destino sempre lhe reservou.
Um plano de organização e ação terrorista orquestrado por antigos membros do Partido dos Trabalhadores vem à tona. Desmascarado e revelado o movimento subversivo, Bolsonaro endurece ainda mais. Prisões abarrotadas.
Como somos brasileiros e não desistimos nunca, políticos cassados do Partido dos Trabalhadores fundam o Movimento Stalinista Democrático Revolucionário ― MSDR, que passa a atuar na clandestinidade.
Bolsonaro, em cadeia nacional de rádio e televisão, lágrimas nos olhos, assegura que tudo o que faz tem o propósito de salvaguardar a democracia e a liberdade.
Nesse cenário distópico, é constituído pelo governo um Conselho de Pastores de Igrejas Neopentecostais ― “Conselho Teológico Nacional” ― para legislar sobre moral e costumes. O Conselho atuará, também, como Corte Constitucional Suprema, analisando recursos e ações diretas. Cada uma das maiores igrejas neopentecostais brasileiras indica representantes para o Conselho, referendada a indicação pelo Presidente da República. Ao Conselho caberá, também, promover a censura prévia aos meios de comunicação de massa. Bem assim, compete ao Conselho ― competência direta ― apreciar e julgar casos de Crimes Contra o Sentimento Religioso, Crimes Contra a Moral, os Bons Costumes e a Castidade, heresias, apostasias, simonia, anátemas, ateísmos, idolatrias, bruxarias, satanismos e congêneres.
A Bíblia Sagrada é adotada como parâmetro constitucional regente das normas infraconstitucionais. O mandamento constitucional é o de que norma nenhuma poderá confrontar preceitos bíblicos.
As religiões de matriz africana são declaradas satanistas e ilegais. Passam, então, a atuar na clandestinidade. Seus agentes, quando capturados em flagrante delito, são internados em campos de reeducação teológica.
O funcionamento da Igreja Católica é tolerado, mas a destruição pública de imagens sacras passa a ser admitida e o Papa Francisco ― comunista ― é declarado persona non grata em todo o território nacional. A CNBB é dissolvida, é cassado o título de “padroeira do Brasil” de Nossa Senhora Aparecida e abolido o feriado de 12 de outubro.
O homossexualismo é declarado contrário à natureza humana, sendo seus agentes levados à internação para aplicação da cura gay.
As doutrinas criacionista e de terra plana passam a ser ministradas nas escolas e a doutrina darwinista de evolução das espécies é julgada inconstitucional.
É decretado o exílio de cientistas que defendem o aquecimento global. As vacinações são declaradas facultativas.
Bolsonaro confessa ser “homem da direita”, mas, como o nazifascismo é de esquerda, Bolsonaro é de direita democrática de centro.
Em nossa realidade fantástica, são retiradas das universidades as seguintes matérias: história, geografia, sociologia, filosofia, ciência política, relações internacionais, jornalismo, psicologia e letras, o que gera o fim da balbúrdia universitária. O Conselho Teológico Nacional passa a nomear reitores das universidades ― em regra, pastores e bispos neopentecostais. Cursos de teologia ― de grande prestígio ― ministrados, exclusivamente, por pastores e bispos neopentecostais, são implantados nas universidades.
Os Estados Unidos, aliado do Brasil de primeira hora, é convidado a instalar bases em território nacional.
Nesse ínterim, físicos israelenses desenvolvem um buraco de minhoca espaço-temporal que consegue interligar passado, presente e futuro, permitindo a tão sonhada viagem no tempo. Sendo Bolsonaro o maior aliado de Israel, o governo israelense passa ao governo brasileiro os planos que permitem a confecção do buraco de minhoca nexo espaço-temporal.
Mesmo vendo a ciência com grande desconfiança, Bolsonaro convoca físicos brasileiros, que, munidos dos indispensáveis cálculos, desenvolvem secretamente a máquina do tempo brasileira. Bolsonaro não perde tempo: traz, diretamente do ano de 1969, o General Médici, o Brigadeiro Burnier, o General Newton Cruz (que ainda é vivo, mas, na versão Século XXI, já está de pijama) e o Coronel Ustra, que passam a integrar o estado maior de Bolsonaro, juntamente com os três zeros ― o 01, o 02 e o 03.
Nessa distopia, um técnico corrupto furta e vende os planos da máquina do tempo para o Movimento Stalinista Democrático Revolucionário ― que, assaltando bancos, tinha dinheiro em caixa. Cientistas esquerdistas do MSDR constroem, então, sua máquina do tempo e importam, do ano de 1969, os três Carlos ― o Prestes, o Marighella e o Lamarca ―, que passaram a integrar o alto comando do MSDR. Não satisfeito, o MSRD traz, ainda, Fidel Castro e Che Guevara, eleitos por aclamação comandantes supremos do Movimento.
O Conselho Teológico Nacional, nesse realismo mágico, elabora um livro intitulado “As maravilhas do dar”, a ser inserido no Novo Testamento, logo após o Livro do Apocalipse. Nele são narrados casos maravilhosos e milagrosos de pessoas que muito deram e muito receberam. Posteriormente, o Conselho define regras alusivas ao dízimo, convertendo-o em tributo, para a glória de Jesus.
Bolsonaro é declarado “Mito e Guardião Perpétuo do Brasil”. É decretada, pelo Conselho Teológico Nacional, imunidade plena de Bolsonaro contra o coronavírus.