– Então? A experiência não foi boa? – perguntou Allan pondo o chá na xícara. A fumaça dançando estranhamente no espaço.
– Não. Nada boa – respondeu Kyra cabisbaixa.
– Mas vocês não apoiaram o movimento? Digo, sua família?
– Sim! Você sabe que sim. Quando retornei para lá papai inclusive havia feito de nossa fazenda uma espécie de quartel general em favor da causa. Ele também escrevia diariamente no jornal, com crônicas e artigos defendendo veladamente o movimento. Nosso armazém na cidade distribuía o saldo do estoque entre os camaradas – nesse ponto ela levantou a cabeça e olhou diretamente para o amigo, depois prosseguiu: – Antes mesmo da nossa vitória, papai fez oficialmente de cada empregado um sócio. Tanto do armazém, quanto das terras – falou pressionando o indicador esquerdo em dois pontos da madeira da mesa. Depois continuou: – Mas, pouco tempo depois de alcançarmos o nosso objetivo, já não éramos mais donos de nada – ela gesticulou levando as mãos a se afastarem bruscamente com as palmas viradas para o tampo do móvel.
– E por que já não eram mais os donos? Como assim?!
– Tudo foi mudando rapidamente. O povo estava insatisfeito, não se cumpriam as promessas de igualdade, senão nas obrigações de subserviência. Os líderes necessitavam mostrar controle da ordem e do poder. Dimitri um dia apareceu para agradecer pessoalmente o empenho de papai, mas aproveitou para nos comunicar que tudo, tudo, pertencia ao estado. Era do povo. Já não tínhamos direitos sobre nossas propriedades. Nos informou a nossa casa na cidade sendo desapropriada. Depois ele mesmo passou a ocupá-la. O armazém fechou há dois anos – respondeu com ar de decepção. Queria dizer que sequer sabia notícias do pessoal, mas calou-se.
– Lembra do que eu lhe…
Allan deteve-se coçando o queixo. Era melhor não falar.
– Do que você… o quê, Allan? Fale – pediu a moça.
Ele pigarreou e pôs a mão no ombro da amiga. Fechou os olhos e inspirou, quando olhou novamente para ela, respondeu:
– Bom… Em nossas discussões antigas eu lhe falava que a diferença entre ignorantes e estúpidos, é que os primeiros podem aprender.
Ele se arrependeu de haver dito aquilo.
– Entendi, Allan.
Ela falou com o olhar perdido por entre o espaço da janela aberta. Tinha os campos verdes da primavera inglesa à sua frente.
Allan lhe serviu o chá calado, pousando a xícara sobre o pires na mesa. Observou o olhar perdido da moça. Ela parecia assistir um filme através da janela.
– E o seu diploma? – ele perguntou relembrando a colega de faculdade, empolgada com os rumos políticos em seu pequeno país no leste europeu.
– Não me rendia absolutamente nada. Era como se o meu conhecimento adquirido na educação financiada por papai fosse patrimônio também do Estado. Se eu não tivesse fugido, estaria trabalhando obrigada e praticamente de graça em algum hospital.
Allan notou o tom de tristeza na voz de Kyra. Passou a mão suavemente em sua cabeça.
Ela já não tinha os cabelos soltos e caídos na cintura. Estavam mal cortados, mal cuidados, na altura dos ombros.
Allan deu a volta na mesa. Sentou-se à sua frente, puxando a cadeira mais para direita. Queria deixar a janela totalmente à vista da amiga.
Kyra levou a xícara à boca e soprou levemente no chá, bebericando alguma coisa em seguida. Estava com os olhos fixos no jardim. Lembrou de quando soube do suicídio do pai, divagando que o velho havia morrido bem antes. De tristeza. De falta de esperança.
A fumaça do chá parecia contornar objetos, em movimentos lentos.
– Sabe, Allan, há uma diferença enorme entre o Capitalismo que você sempre defendeu em nossas discussões e o Socialismo visto por mim como a solução para os conflitos sociais – ela falou após um breve silêncio.
Voltou a se calar. Bebeu mais um pouco do chá com os olhos fixos na primavera lá fora. Depois da janela.
O amigo observava a sua figura triste. Não enxergava mais a jovem de olhos vivos por quem se apaixonara havia quatro primaveras. A moça estava maltratada, magra, embora a beleza ainda fosse presente em seu rosto pálido.
Um vento entrou pela janela e trouxe os cabelos dela para cima do olho direito.
– Qual, Kyra? Qual seria essa enorme diferença? – quis saber Allan com um pouco de amargura na voz.
Ela segurava a xícara de chá com a mão direita. O cotovelo, ao lado do pires, apoiado na mesa.
– No Capitalismo os homens exploram desumanamente outros homens – ela respondeu. Apertou o lábio inferior com os dentes e tirou com a mão esquerda a franja do olho. Allan apenas a observava. Ela prosseguiu: – No Socialismo é o contrário.
Tomou um gole do chá e descansou a xícara no pires.
Allan segurou as mãos de Kyra sobre a mesa. Os olhos dela marejavam.