O CARTEIR0 E O DEFUNTO
Carlos Pereira Costa Filho
Em 2 de novembro comemora-se o dia de finados.
Percebe-se claramente a contribuição dada pelos antigos cristãos para a formação de novas palavras em um determinado idioma. No nosso caso, o velho Português.
Neologismo lexicografado já é indício de que a palavra pode e deve ser utilizada.
Fiz um arrodeio para dizer que a palavra finados vem de fim.
Fim mesmo, visto que os cristãos acreditam em Deus até o momento da morte. Depois disso.....bom, o resto é dúvida. O mais provável, para a maioria dessas pessoas, é que seja realmente o fim.
Nos dias de finados lembro-me de Balsas. Nessas lembranças me vem à cabeça os mortos que deixei por lá, enterrados no Cemitério da avenida Catulo, conhecida antigamente pelo apelido de praça dos três “C”, visto concentrar naquela área, em convivência pacífica e ordeira, cabaré, cadeia e cemitério.
Diziam que o camarada aprontava no cabaré e logo seria preso pelo Soldado Ribamar Kikiki. Depois de morrer de fome na cadeia o corpo seria levado ao cemitério, lugar onde deveria encerrar a pena.
Mas, deixemos pra lá esse assunto violento e macabro, por enquanto.
Quero me referir agora a um certo fato do qual me lembrei ao refletir sobre o dia de finados: a morte de um cidadão da cidade de Alto Parnaíba que foi a Balsas para tratamento de saúde, mas faleceu no Hospital São José.
A esposa, sofrendo muito naquele momento, teria de levar o corpo do marido para ser sepultado em Alto Parnaíba.
Para isso, fretou o jeep boiadeiro (jeep de quatro portas) do Luis Sandes.
Como já era noite, Luis Sandes lembrou-se do velho carteiro que fazia a ligação dos Correios de Balsas a Alto Parnaíba, passando necessariamente por Brejo da Porta (hoje Tasso Fragoso), pois, com certeza, o carteiro balsense faria esse trajeto por aqueles dias e Luis Sandes poderia contar com a companhia do Paulo Bregaro balsense em missão tão piedosa.
Já passava das oito da noite quando Luis Sandes se dirigiu à casa de Amazilo, o velho carteiro.
Convite feito e logo aceito sem pestanejar.
Para Amazilo seria melhor sair logo à noite de carro do que enfrentar a distancia de burro ou de uma possível carona. Melhor acompanhar o cortejo, pensou ele.
Um hábito muito presente no Amazilo era o de tomar uma proncha. Isso mesmo, gostava de beber uma boa cachaça, misturada com uma vereda. Sem ela como companheira, Amazilo não enfrentaria com tamanho sacrifício os desafios da viagem.
O carteiro apanhou a correspondência no prédio dos Correios e, logo após, rumaram para o Alto Parnaíba Luis Sandes, Amazilo, a viúva chorosa e o defunto.
A estrada vicinal era muito ruim.
Viajando noite adentro, motor do jeep roncando, Amazilo bebendo e falando, viúva chorando e Luis Sandes dirigindo, ouvia tudo e, de vez em quando, também tomava uma. dose.
Lá pelas tantas, incomodados pelos murmúrios da viúva, Amazilo, sentado no banco ao lado do condutor, virou-se para trás e convenceu a pobre mulher a tomar um gole da “maranhense” a fim de se acalmar.
A viuvinha sentiu-se bem melhor com a sensação que a vereda lhe proporcionara. Até começou a interferir na conversa entre Luis Sandes e Amazilo.
Por volta das duas hora da manhã chegaram a Brejo da Porta, hoje Tasso Fragoso.
Encontraram a cidadezinha às escuras, como era de costume no velho Maranhão largado às traças, muito embora o seu povo seja apaixonado pelo Sarney.
Pararam no posto de abastecimento e borracharia da cidade. O único, por sinal.
Luis Sandes faria uma inspeção no veículo antes de continuar.
Nessa hora chega o borracheiro e pergunta a Luis para onde estão indo. Luis logo responde que está indo até o Alto Parnaíba com a missão de levar um defunto.
O borracheiro, homem curioso, fez a volta no veículo para certificar-se da novidade. Ao reencontrar-se com Luis, pergunta:
- Cadê o defunto?
Luis Sandes respondeu:
- Tá aí na traseira do jeep.
O borracheiro continua:
- Aqui mesmo não. Já acendi a lanterna e foquei até debaixo do jeep e não vi defunto algum.
Foi um desespero só.
Espantados com a ausência de tão ilustre passageiro, lembrou-se Luís Sandes da existência de uma ladeira muito íngreme antes de chegar a Brejo da Porta, provavel local onde poderia o defunto ser encontrado.
Retornaram às pressas.
A intuição de Luis Sandes estava correta, pois encontraram no topo da ladeira o caixão já aberto e sem o corpo do defundo.
Deu um pouco de trabalho para encontrar o defunto, pois rolou ladeira abaixo após o caixão abrir-se.
Talvez teria sido o último esforço do finado na esperança de escapar daquele vexame.
Recolocado o defunto no esquife, embarcaram-no novamente no veículo.
Desta vez, porém, seguindo orientação muito lúcida do velho carteiro Amazilo, obrigaram a viúva a seguir escanchada no caixão a fim de fazer o peso necessário para firmar a nobre mercadoria e não acontecer um novo imprevisto.
Ao chegarem a Alto Parnaíba, Amazilo, o bom carteiro, por muito ter se preocupado com a situação do defunto, esqueceu-se que a carga que levara para os Correios ficara para trás, provavelmente na ladeira do Brejo da Porta.
A historia é feita por homens, mulheres, cachaça e defuntos.