Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura de Cordel quarta, 21 de novembro de 2018

O CACHORRO DOS MORTOS (FOLHETO DE LEANDRO GOMES DE BARROS)

 

 

Os nossos antepassados

Eram muito prevenidos

Diziam: matos têm olhos

E paredes tem ouvidos

Os crimes são descobertos

Por mais que sejam escondidos

 

Em oitocentos e seis

Na província da Bahia

Distante da capital

três léguas ou menos seria

Sebastião de Oliveira

ali num canto vivia

 

Ele, a mulher e duas filhas

E um filho já homem feito

O rapaz era empregado

E estudava direito

O velho não era rico

Mas vivia satisfeito

 

As duas filhas eram moças

Bonitas e encantadoras

Logravam na capital

O nome de sedutoras

Chamavam atenção de todos

As grandes tranças tão louras

 

Esse velho era ferreiro

E ferreiro habilitado

Vivia ali do ofício

Plantando e criando gado

Por três vezes enjeitou

O cargo de delegado

 

Havia um vizinho dele

Eliaziário Amorim

Esse tinha um filho único

Da espécie de Caim

Enquanto o espanhol velho

Até não era ruim

 

O filho deste espanhol

Era uma fera carniceira

Veio provocar namoro

Com as filhas de Oliveira

Uma delas disse a ele:

De nós não há quem o queira



Ele disse: Tu não sabes

Que meu pai possui dinheiro

Em terras e criações

É o maior fazendeiro?

Ela disse: O meu pai é pobre

Planta, cria e é ferreiro

 

Minha mãe tece de ganho

Nós vivemos de costura

Meu pai vive de sua arte

E de sua agricultura

Meu irmão é empregado

Para que maior ventura?

 

O sedutor conheceu

Seus planos serem debalde

E só podia vencê-la

Por meio de falsidade

Que é a arma mais própria

Aonde existe a maldade

 

Saiu dali Valdivino

Fedendo a chifre queimado

E Angelita ficou

Com o coração descansado

Nem disse aos outros de casa

O que tinha passado

 

Ele pensou em forçá-la

Mas pensou no resultado

Devido o pai de Angelita

Ser muito considerado

O filho pelo governo

Era tão conceituado



Exclamou ele consigo:

oO! Angelita és tão bela

Eu não sossegarei mais

E nem me esquecerei dela

Farei tudo para vencê-la

Porém não caso com ela

 

Mas Valdivino temia

O pai dela e o irmão

Que o governo da província

Tinha-lhe muito atenção

O rapaz era empregado

E tinha consideração

 

Valdivino inda pensou

Que matando Floriano

Podia calçar com ouro

Todo governo bahiano

Ainda que entrasse em júri

Não passava nem um ano



Ou poderia matá-lo

Oculto numa emboscada

Porque ninguém vendo o crime

Ele não sofria nada

Defunto não conta história

Estava a questão acabada

 

Havia ali um engano

Entre Vitória e Bahia

A divisão das províncias

Ali ninguém conhecia

Sebastião de Oliveira

Era o único que sabia

 

O governo da província

Tendo aquela precisão

Disse um dia a Floriano

Você vá em comissão

Chamar seu pai para vir

Mostrar a demarcação

 

Valdivino de Amorim

Viu Floriano passar

Escolheu o lugar próprio

Onde pudesse emboscar

Dizendo dentro de si:

Ele não pode escapar

 

A fera foi emboscá-lo

Onde havia uma capoeira

Carregou um bacamarte

Fez duma árvore trincheira

Distante um quarto de légua

Da fazenda de Oliveira

 

O rapaz chegou em casa

O velho tinha saído

Foi ver se achava um jumento

Que havia se sumido

Um amigo lhe escreveu

Que lá tinha aparecido

 

O Floriano chegou

Depois que o velho saiu

Nessa tarde não voltou

Com a família dormiu

Deu o recado à mãe dele

De madrugada seguiu

 

Calar um cachorro velho

Que Sebastião criou

Quando Floriano saiu

Calar o acompanhou

Floriano quis voltar

Porém Calar não voltou

 

Passava ali Floriano

A fera então enfrentou-o

Disparou o bacamarte

Sem vida em terra lançou-o

Calar partiu ao sicário

O assassino amarrou-o

 

As moças lá da fazenda

Ouviram o grande estampido

Angelita se assustou

Dizendo: O que terá sido?

O tiro foi para o lado

Que seu irmão tinha ido

 

Angelita convidou

A sua irmã Esmeralda

Dizendo: Vamos aqui

A passeio pela estrada

Aquele tiro que deram

Deixou-me sobressaltada



No sertão naquele tempo

Podia uma moça andar

Passava dois ou três meses

Sem nem um homem passar

Por isso foram elas duas

Não tinha o que recear

 

Iam ali conversando

Sobre a aragem matutina

Disse Esmeralda à irmã:

Olha para o céu, menina

Estás vendo aquelas estrelas

Como têm a luz tão fina?

 

Chegaram aonde o irmão

Estava morto na estrada

O criminoso no mato

Atirou em Esmeralda

E enfrentou Angelita

Dizendo: Não diga nada

 

Angelita muito pálida

Sem estar esmorecida

Vendo os dois irmãos já mortos

Por uma mão homicida

Lhe disse: Monstro tirano

Eu morro e não sou vencida

 

Ele disse: Angelita

Com tudo isso sou teu

Foi dar-lhe um beijo nos lábios

E Angelita mordeu

Ele cravou-lhe o punhal

Ela ali esmoreceu

 

Pondo a mão na punhalada

Disse: Monstro desgraçado

Aquele velho cachorro

Que está ali amarrado

Descobrirá este crime

E tu serás enforcado



Olhou para o gameleiro

Que tinha junto a estrada

Dizendo: Tu gameleiro

Viste esta cena passada?

És uma das testemunhas

Quando a hora for chegada

 

Na última agonia

Exclamou: Monstro assassino

Tirastes agora três vidas

E não sacias o destino?

Isso hei de te lembrar

Perante o juiz divino!

 

Não julgue que fique impune

Este sangue no deserto

Tu não vês três testemunhas

Que estão aqui muito perto

Estás perante ao público

Irão depor muito certo

 

Disse Valdivino: És louca

Quem viu o que foi passado?

Disse Angelita: Este cão

Que está ali amarrado

A gameleira e as flores

Dirão no dia chegado

 

Olhou para o cão e disse:

Olha, meu velho Calar

Tu dirá tudo ao juiz

Se ele te perguntar

Essa velha gameleira

Fica para te ajudar

 

Essa flor que por ela

Há festa aqui todo ano

Há de tirar a justiça

De uma suspeita ou engano

Dirá ao juiz: Venha ver

Quem matou o Floriano!

 

As três vidas que roubaste

Pagarás com sua vida

Tu hás de te arrepender

Depois da causa perdida

Uma lágrima vertida

Será por teu pai vertida

 

Contudo monstro, perdôo-te

Porque fui e sou cristã

A morte do meu irmão

A minha e de minha irmã

Tu hoje matas a mim

Outro te mata amanhã

 

E pondo a mão sobre uma

Das punhaladas que tinha

Disse a Calar: Se fugires

Consola a minha mãezinha

E diga-lhe que abençoe

Os pobres filhos que tinha



Embora que tu não fales

Pois não te foi concedido

Mas um olhar bem lançado

Dá idéia dum sentido

Um uivo e um olhar

Pode ser compreendido

 

E ali cerrando os olhos

Quase sorrindo expirou

O assassino olhando

Chorando se retirou

Depois pensou: Isto é nada!...

Com toda calma voltou

 

Já estava frio o cadáver

Porém nas faces mimosas

Via-se perfeitamente

Desenho de duas rosas

Como se fossem pintadas

Por mãos das mais curiosas

 

Em Esmeralda se via

O sangue ainda saindo

Vestígio de zombaria

Como quem morre sorrindo

Como criança que brinca

Finge que está dormindo

 

O rapaz banhado em sangue

Bem no meio da estrada

À esquerda de Angelita

À direita de Esmeralda

Com uma mão na ferida

E a outra mão estirada



Valdivino tinha à noite

Escrito numa carteira:

"Eu hoje hei de matar

Floriano de Oliveira

Se não matá-lo me mato

Será a minha derradeira"

 

Datou-a e assinou o nome

Pegou a arma e saiu

Se encostou num gameleiro

A carteira escapuliu

Havia um oco da árvore

Nele a carteira caiu

 

A fera não se lembrou

Da testemunha ocular

Perdendo aquela carteira

Alguém a podia achar

Ela na mão da justiça

Quem poderia o soltar?

 

Porém uma força oculta

Permitiu que ele perdesse

E a mesma força impôs

Que dela se esquecesse

Para dizer a seu tempo:

O assassino foi esse!

 

Calar, o velho cachorro

Que aquele espetáculo via

Soltando uivos enormes

Que muito longe se ouvia

Rosnava, fitava os olhos

Debalde a corda mordia

 

Valdivino ali puxando

Um facão muito afiado

Descarregou no cachorro

Um golpe encolerizado

Errou e cortou a corda

Com que estava amarrado

 

Valdivino ficou triste

Vendo o cachorro correr

Lembrou-se o que Angelita

Disse antes de morrer

Porém disse: Ele não fala

Como poderá dizer?

 

Calar chegou na fazenda

Uivando desesperado

Dona Maria da Glória

Já tinha levantado

Quando viu o cão uivando

Aí cresceu-lhe o cuidado

 

E foi procurar os filhos

Onde ouviu os estampidos

Calar foi adiante uivando

Com enormes alaridos

Dona Maria da Glória 

Ia aguçando os ouvidos



Como não foi seu espanto

Quando chegou no lugar

Onde achou os filhos mortos

Sem nada ali atinar

Calar sabia de tudo

Mas não podia falar

 

Voltou Maria da Glória

Num triste e penoso estado

Já Sebastião em casa

A esperava sentado

Não sabia da desgraça

Que a pouco tinha se dado

 

Perguntou pela família

Ela não pôde contar

Disse apenas: Morreu tudo

E apontou o lugar

Estendeu-se para um lado

Sem mais nada atinar

 

Sebastião de Oliveira

Foi por onde a mulher veio

Achou a poça de sangue

Os filhos mortos no meio

Olhou para o céu e disse:

Oh! Meu Deus que quadro feio

 

Foi perguntar à mulher

Como aquilo foi se dado

Ela apenas lhe contou

O que tinha passado

Deixando o ancião

Aflito e impressionado

 

Montou num burro e saiu

Dali para a capital

Quando chegou na cidade

Foi ao quartel general

Lá falou mais duma hora

E nada disse afinal



Depois de muita insistência

O presidente entendeu

Perguntou por Floriano

Ele lhe disse: Morreu..

Ele e a família toda!...

E contou o que se deu

 

A justiça foi atrás

Ver o que tinha se dado

Encontrou os três cadáveres

No chão em sangue banhado

Calar inda estava uivando

Junto dos mortos deitado

 

Foram à casa de Oliveira

Ver se Maria da Glória

Dava um roteiro que ao menos

Se calculasse uma história

Ela contou essa mesma

Que eles guardam na memória

 

Dona Maria da Glória

Dois dias depois morreu

Sebastião de Oliveira

Com três dias enlouqueceu

Dentro de duas semanas

Tudo desapareceu

 

A justiça da Bahia

Não cessou de procurar

Espalhou por toda parte

Secretos a indagar

Não havia uma pessoa

Que dissesse: Eu vi matar

 

Dava dez contos de réis

Na moeda que quisesse

À pessoa que chegasse

E seriamente dissesse

Teria mais um terreno

A pessoa que soubesse

 

Porém o crime se deu

Quando ali ninguém passava

Calar sabia tudo

Porque no crime ele estava

Se falasse descobria

Desejo não lhe faltava



Impressionava a todos

Habitantes da cidade

Como deu-se aquele crime

Naquela localidade

Floriano de Oliveira 

Todo lhe tinha amizade

 

Atribuiu-se a um roubo

Por algum aventureiro

Mas o rapaz costumava

A não andar com dinheiro

Questão de moça não era

Ele era justiceiro

 

Os moradores de perto

Eram todos conhecidos

Compadres dele e do pai

E por eles protegidos

Tanto que se dando o crime

Todos ficaram sentidos

 

Eliziário era um desses

Abortos que tem havido

Desses que o pão que come

Considera estruído

Fazer-lhe o mal é pecado

Fazer-lhe o bem é perdido

 

Esse era fazendeiro

Porém dali não saía

Nem era bem conhecido

No comércio da Bahia

Só onde vendia lã

Alguém lá o conhecia



E o dono do açougue

Onde ele vendia gado

O banco onde ele tinha

Dinheiro depositado

Tanto que deu-se esse crime

E dele não foi lembrado

 

Sentiu e chorou bastante

A morte do camarada

E não foi à missa dele

Por não ser de madrugada

Pois só tinha uma camisa

E essa estava rasgada

 

Também procurou saber

Qual seria o assassino

Não sei se pelo dinheiro

Ou pelo próprio destino

Mas nunca lhe veio na mente

Ser seu filho Valdivino


 

Onde deu-se o crime havia

Duas estradas em cruz

Diziam que ali se achavam

Umas flores muito azuis

Formando uma lapa igual

À do menino Jesus

 

Os baianos costumavam

Desde da antigüidade

Fazerem uma grande festa

Naquela localidade

Véspera e dia de ano

Ali era novidade

 

Na capital da Bahia

Não havia outro festim

Havia missa campal

Orquestra e botequim

Bailes naquelas latadas

Bem cobertas de capim

 

Em oitocentos e nove

Estava a festa a terminar

Um velho que ali passava

Passou naquele lugar

Atrás desse caçador

Vinha o cachorro Calar



Abrigou-se numa sombra

Vinha muito esbaforido

Foi cheirar o pé da cruz

Que o senhor tinha morrido

Cheirou a das duas moças

E depois soltou um gemido



Estava ali um general

O bispo e o presidente

Com o chefe da polícia

Homem muito experiente

Todos ficaram daquilo

Impressionadamente

 

O general perguntou

De quem era aquele cão

Respondeu o velho Pedro:

Este cachorro patrão

É do defunto Oliveira

Que Deus dê-lhe a salvação

 

Este cachorro é o rei

Dos cachorros caçadores

Ainda adora o lugar

Que mataram seus senhores

Se fosse de madrugada

Seus uivos faziam horrores

 

Disse o chefe de policia:

Inda não se descobriu

A morte de um patrício

Que tanto à pátria serviu

Foi logo nesse deserto

Em horas que ninguém viu

 

Disse ali o presidente:

Se ainda se descobrir

O autor dessas três mortes

Eu juro por Deus o punir

Serei o carrasco dele

Quando ele à forca subir

 

Sebastião de Oliveira

Era um pobre acreditado

A família deu exemplo

O filho um rapaz honrado

Era um rapaz distinto

Por todo mundo estimado

 

Então disse o general:

Isso ainda é descoberto

O crime foi muito oculto

Feito aqui neste deserto

Mas quando chegar o dia 

Há de saber-se por certo

 

Se eu vivo for nesse tempo

Serei o algoz mais forte

Serei um dos que conduz

Para o teatro da morte

Com a minha própria mão

Amolo o ferro que o corte

 

O cachorro ouvindo aquilo

Ergueu-se muito contente

Foi aos pés do general

Festejou o presidente

Como quem dizia: O crime

É punido corretamente

 

Disse o bispo: Esse cachorro

É testemunha ocular

Ele viu quem fez as mortes

Só faltava é ele apontar

Se ele visse o criminoso

Podia lhe denunciar

 

Disse o velho: Esse cachorro

Fez uma coisa esquisita

Tinha uma cobra enroscada

Onde mataram Angelita

Ele despedaçou-a a dentes

Quase que se precipita

 

Disse o velho: Esse cachorro

Aos pés da cruz se lança

Solta um uivo muito triste

Como quem pede vingança

Como quem pede debalde

Sem ter daquilo esperança



Nisso chegou um cavalheiro

Valdivino de Amorim

Andava fora inda vinha

Ver se alcançava o festim

Vinha num burro possante

Alvo da cor de jasmim

 

Assim que o cachorro viu

Valdivino se apear

Rosnou e partiu a ele

Querendo lhe estraçalhar

Só não rasgou-lhe a garganta

Devido o velho pegar

 

Tremia o queixo e babava

Fitando ali Valdivino

Uivava como quem já

Tivesse perdido o tino

Só faltava era dizer

— Eis aí o assassino!

 

E foi para o pé da cruz

E ali pegou a uivar

Fitando os olhos no céu

Como quem quer suplicar

Como quem dizia: Oh! Deus

Vens que não posso falar!

 

O bispo disse: Valdivino

Você está descoberto

O senhor foi autor

Das mortes neste deserto

Aquele cachorro deu 

Um depoimento certo



O monstro viu o perigo

Fez tudo para negar

O bispo disse: Meu filho

Não há mentira em olhar

Os olhos são verdadeiros

Não podem nada ocultar



Os olhos também se queixam

Um olhar diz o que sente

Ameaça ou traição

Punição severamente

Declara mágoa ou dor

Porém o olhar não mente

 

O olhar daquele cão

Está demonstrando a dor

O sentimento profundo

Da morte do seu senhor

Ele só falta falar

E apontar o matador



Naquilo duas crianças

Que estavam em brincadeira

Uma delas se trepou

Num galho de gameleira

Tirando um ninho de rato

Achou nele uma carteira



O leitor deve lembrar-se

De um verso que aqui já leu

Veja na véspera do crime

O que Valdivino escreveu

E que no oco da gameleira

A carteira se perdeu



Ali trouxeram a carteira

Entregaram ao general

O bispo disse: Senhor

O que lhe disse afinal

Eu não lhe disse que os olhos

Só diz o que é legal?

 

Valdivino descobriu tudo

Em sua interrogação

Calar ali demonstrava

Ter grande satisfação

Pulava um metro de altura

E rolava pelo chão

 

Corria escaramuçando

Como quem estava em folia

Festejou o general

Com demarcada alegria

Como quem dizia: Nesses

Encontrei o que queria

 

O povo todo da festa

Quis a Valdivino linchar

O bispo e o presidente

Tratou de acomodar

Garantindo que a justiça

Havia de o castigar



Saiu preso Valdivino

Calar o acompanhou

O velho Pedro chamava

Mas ele não escutou

Voltou quando Valdivino

Preso nos ferros deixou

 

O general ao sair

Ordenou ao cozinheiro

Que desse ao velho Calar

Um bom lombo de carneiro

Porque merecia muito

Aquele bom companheiro

 

O criado deu o lombo

Calar nem para ele olhou

Saiu o povo da festa

E o lombo lá ficou

O cachorro veio comer

À noite quando voltou

 

A mulher de Eliziário

Sabendo o que aconteceu

Deu-lhe um ataque tão forte

Que ela no chão se estendeu

Passou a noite sem fala

No outro dia morreu

 

Juvenal um espanhol

Parente de Eliziário

Chegando lá disse ao velho:

— você é milionário

Compre três ou quatro médicos

Que provem ele está vario



Porque ele estando vário

Não poderá ser julgado

O processo fica inválido

Não pode ser condenado

Aí o senhor procura

O melhor advogado

 

Eliziário pensou

Aquilo ser acertado

Do contrário Valdivino

Ia ser executado

E tinha toda certeza

Ele morrer enforcado

 

Dirigiu-se à capital

Procurou advogado

Este arrumou cinco médicos

Sendo o réu examinado

Provaram que há quatro anos

Ele era tresloucado

 

O bispo e o presidente

Consultaram ao general

Mandaram vir quatro médicos

No reino de Portugal

E fizeram na Bahia

Uma junta especial

 

Vieram de Portugal

Quatro médicos escolhidos

Que por dinheiro sem conta

Não seria iludidos

Esses homens de caráter

Jamais seriam vendidos

 

E examinaram o réu

Cada médico de per si

Todos disseram que nunca

Houve tal loucura ali

Nem sequer nervoso havia

Todos juraram aí

 

Fizeram novo processo

Depois dele examinado

E estando pronto o processo

Valdivino foi julgado

A sentença que pegou

Foi para ser enforcado

 

Não havia mais recurso

Estava tudo consumado

O réu dali a três dias

Ia ser executado

Não tinha mais o que apelar

Já tinha sido julgado



O velho quase sem jeito

Sem nada mais conseguir

Tentou o último meio

A fim do filho fugir

Mas só dos degraus da forca

Podia se escapulir

 

Então soube que o carrasco

Era um tal de Zeferino

Um calibre mais ou menos

Igual o de Valdivino

Tinha os três dons da desgraça

Covarde, vil, assassino

 

Era um mulato laranjo

De aspecto aborrecido

O couro da testa dele

Sempre se via franzido

Os cabelos bem vermelhos

Rosto largo e não comprido

 

Foi o velho Eliziário

A esse tal Zeferino

Ver se ele podia dar

Evasão a Valdivino

Dizendo: Ele pula da forca

E depois toma destino

 

Pegue dez contos de réis

Que lhe dou adiantado

E se tiver a fortuna

Dele não ser enforcado

Dar-lhe-ei mais vinte contos

O dinheiro está guardado

 

Então disse Zeferino

— Isso é difícil arranjar

Porém quando ele subir

Eu finjo me desculpar

Ele que vai prevenido

Trata logo de saltar

 

Disse Zeferino ao velho:

O senhor deve aprontar

Um cavalo bem ligeiro

Para quando ele saltar

Montar-se logo e correr

Antes do povo chegar

 

Eu hoje direi a ele

Tudo que está planejado

Que cor será o cavalo

Que há de está selado?

— Diga que é o poldro branco

Em que ele andava montado

 

Valdivino quando soube

Esta consulta que havia

Ficou como uma criança

Chorava ali de alegria

Jurando no mesmo instante

Que Calar lhe pagaria

 

Então quando chegou o dia

Estava o povo aglomerado

Valdivino de Amorim

Ia ser executado

Tudo ali estava esperando

Vê-lo morrer enforcado

 

Presente ao estado maior

Que vinha presenciar

Subiu Valdivino à forca

Zeferino foi laçar

Porém ele se encolhendo

Conseguiu dali saltar

 

E saiu como uma flecha

Entre o povo se meteu

Se montando no cavalo

Dali desapareceu

Internando-se no mato

Num instante se escondeu

 

O povo indignou-se

Com a fuga de Valdivino

Um deles que ali estava

Estrangulou Zeferino

Porque este tinha dado

Evasão ao assassino

 

Porém chegou o cachorro

Quase na ocasião

Soltou dois ou três latidos

Saiu de venta no chão

Sessenta e três praças foram

Também em perseguição

 

Porém Valdivino ia

Em bom cavalo montando

Tinha grande desvantagem

De não ter saído armado

E Calar no rastro dele

Gania muito vexado



Foi preso Eliziário

Como autor da evasão

O povo não o matou

Porém foi para a prisão

E o bispo que saiu

Pedindo à população

 

Era meia-noite em ponto

Valdivino ainda corria

O cavalo já cansado

Que nada mais resistia

E o cachorro Calar

De vez enquanto latia

 

Valdivino conhecendo

Que nada a ele valia

E o cachorro Calar

Seu rastro não deixaria

Pensou em suicidar-se

Só assim descansaria

 

Dentro do mato apoiou-se

E amarrou o cavalo

Encostou-se numa pedra

Sentiu alguém acordá-lo

Nisto o cavalo espantou-se

Ele não soube pegá-lo



Seguiu por uma vereda

Descalço e todo rompido

Ouvindo de vez enquanto

Calar soltar um ganido

Foi sair bem no lugar

Que o crime tinha havido

 

Ele viu a gameleira

Que sombreava a estrada

Floriano de Oliveira

Angelita e Esmeralda

Sebastião de Oliveira

E dona Maria prostrada



Viu vir uma carruagem

Nela vinha um magistrado

Que saudou os três vultos

Depois de ter se apeado

Exclamou: Sangue inocente

Breve hás de ser vingado!

 

Tornou a tomar o carro

Se montando foi embora

Nesse momento Calar

Vem com a língua de fora

Festejou todos os vultos

E voltou na mesma hora

 

Um dos vultos chamou ele

O cachorro estacou

Valdivino não ouviu

O que o fantasma falou

Só ouviu foi dizer: Volte

E o cachorro voltou



O criminoso pensou

Que ali não escaparia

Lembrou-se duma pessoa

Que morava na Bahia

Pois tinha onde ocultá-lo

Que nem o cachorro via

 


Era um compadre e amigo

A quem ele protegeu

Que com dinheiro do pai

Esse tal enriqueceu

E ia sempre visitá-lo

Quando a justiça o prendeu

 

Valdivino calculou:

Eu o que devo fazer

É ir para o quintal

Por ali me esconder

Ou ele ou a mulher dele

Um há de me aparecer

 

E saiu o assassino

Chegando lá se escondeu

Não houve ali quem o visse

Quando o dia amanheceu

O compadre veio fora

E ele lhe apareceu



Valdivino lhe pediu

Que não o deixasse morrer

Disse o velho Roberto:

Eu tenho onde te esconder

Porém ninguém mais daqui

Disso não pode saber

 

Quatros dias decorriam

E o assassino escondido

Debaixo dumas madeiras

Estava ele metido

O pai dele na cadeia

Já ia ser concluído

 

Num dia de quarta-feira

O velho Calar chegou

A força ainda estava armada

Calar ali a olhou

Cravando a vista no céu

Um uivo triste soltou

 

Veio ali o presidente

Que trouxe um pão e lhe deu

Calar olhou para ele

Cheirou-lhe os pés e gemeu

Botando o pão entre as mãos

Deitou-se e ali comeu

 

Chegou a força do mato

Não trazendo o criminoso

O general com aquilo

Ficou muito desgostoso

Até o governador

Ficou doente e nervoso

 

O povo ao redor da forca

Só fazia lamentar

Que o pai do assassino

Deverá se executar

Tudo pedia ao governo

Que o mandasse enforcar

 

O cachorro levantou-se

Como quem está chamando

Foi à casa de Roberto

Na porta ficou uivando

Olhava para Roberto

Partia a ele rosnando

 

O general com aquilo

Ficou bastante nervoso

E disse ao governador:

Estou muito receoso

Que ali naquela casa

Está oculto o criminoso

 

Então a força cercou

Toda casa de Roberto

O cachorro só faltava

Era dizer: Está perto

O general disse a ele:

O senhor está descoberto

 

Roberto ali descobriu

Onde o assassino estava

Debaixo das madeiras

O monstro se conservava

Foi levado ao pé da forca

Onde o povo lhe esperava



Contou tudo que se deu

Antes de ser enforcado

Os vultos que viu nas cruzes

A quem tinha assassinado

O segredo do cachorro

E o carro do magistrado

 

Às cinco horas da tarde

A justiça o enforcou

O pai dele estava preso

Assim que o sino dobrou

Ali soltando um suspiro

Na mesma hora expirou

 

Estando morto o assassino

O deitaram sobre o chão

O cachorro olhou-o bem

Chamando tudo atenção

Soltou dois ou três latidos

Que espantou a multidão

 

Quando a justiça ordenou

Pra ser o corpo inhumado

Sobre os pés do general

Calar caiu mui cansado

Talvez querendo dizer 

General, muito obrigado



O general foi ver água

Ao cachorro ofereceu

Ali o velho Calar

Dois litros d'água bebeu

Trouxeram-lhe uma fritada

Porém ele não comeu

 

Festejando o general

As pernas dele abraçou

Dirigiu-se ao presidente

A mesma ação obrou

Depois desapareceu

Novo destino tomou

 

Foi direitinho ao lugar

Que o horrendo crime se deu

No pé da cruz de Angelita

Ele cavou e gemeu

O velho Pedro chamou-o

Mas ele não atendeu

 

Deitou-se entre as três cruzes

Sua vida liquidou

Nas condições dum guerreiro

Que da batalha voltou

Trazendo os louros de guerra

À sepultura baixou

 

O general quando soube

Que Calar era sumido

E que fazia três dias

Que não era aparecido

Mandou gente procurá-lo

Ficando muito sentido

 

Saíram cinco ou seis praças

Em procura de Calar

O general tinha dito

Não voltem sem o achar

Tragam ele direitinho

Não o façam maltratar

 

Os praças foram ao lugar

Onde o crime tinha havido

Onde a família Oliveira

Tinha toda sucumbido

Bem no pé duma das cruzes

Tinha o velho cão morrido

 

Tinha posto termo a vida

O maior dos lutadores

O que em sua existência

Viu o horror dos horrores

Que sem falar descobriu

Quem matou os seus senhores

 

O general quando soube

Da forma que o tinham achado

Mandou fazer uma cova

E nela foi enterrado

Um dos amigos mais firmes

Que no mundo foi criado

 

E nas mortes dos senhores

Ele afirmou ter ação

Provou que tinha amizade

Ao velho Sebastião

A morte só foi vingada

Por sua perseguição



Só não fez foi dizer nada

Mas provou por sua vez

Apontou só com a vista

O monstro que os crimes fez

Seus olhos diziam ao público

Esse matou todos três

 

Deitou-se encostado às cruzes

Que tinham edificado

Tinha morrido há três dias

E nem sequer estava inchado

Como quem dizia: Agora

Posso morrer estou vingado

 

Mais de duzentas pessoas

Assistiram enterrar ele

Devido à grande firmeza

Que tinha se visto nele

Muitas flores naturais

Deitaram na cova dele

 

Agora vejam leitores

Quem era o velho Calar

E como Sebastião

Um dia pôde o achar

Ele tinha cinco dias

O dono ia o matar

 

Então o velho Oliveira

Achou ser ingratidão

Matar aquele inocente

Embora fosse ele um cão

Porém disse: A caridade

Não se faz só a cristão

 

E levou-o para casa

Disse à mulher que criasse

Dizendo: Pode ser bom

Algum dia inda caçasse

Quando nada da fazenda

Talvez os bichos espantasse

 

De fato, Calar criou-se

E era um cão caçador

Maracajá e raposa

Tinha dele tal pavor

Que passava muito longe

Da fazenda do senhor

 

Era o vigia da noite

Um minuto não dormia

Numa coisa que guardava

O velho cão não bulia

Só quando os donos lhe davam

Era que ele se servia

 

A família do Oliveira

Às vezes a conversar

A velha dizia aos filhos:

Esse cachorro Calar

Tem expressões de pessoa

Que conhece seu lugar



Em casa do dono ele

De noite nada chegava

Um bacurau que voasse

Ele se erguia e ladrava

Do poleiro das galinhas

Até coruja espantava



Como era muito bom

O dono sempre caçava

Porém a vizinho algum

A noite acompanhava

E só ia para o mato

Quando o senhor lhe chamava

 

Depois de terem morrido

Os senhores de Calar

O pobre cão toda noite

Ia para aquele lugar

Olhava para as três cruzes

Levava a noite a uivar

 

Latia e fitava o céu

Que causava pena e dó

Via sangue no capim

Ele cobria com pó

Não queria ir para casa

Passava a noite ali só

 

O velho Pedro dos Anjos

Vizinho de Sebastião

Achou que aquele animal

Merecia compaixão

Chamou-o para não vê-lo

Morrer sem ter remissão

 

O velho Pedro caçava

Toda noite com Calar

Mas ele só ia à caça

Depois que ia ao lugar

Aos pés daquelas três cruzes

Não deixava de uivar

 

Assim morreu o Calar

Ficou também descansado

Era um cão porém deixou

O nome imortalizado

Morreu depois de livrar

Quem já o tinha livrado

 

Leitor não levantei falso

Escrevi o que se deu

Acreditem que este fato

Na Bahia aconteceu

Depois de lutar então

Rolou Calar sobre o chão

Onde seu senhor morreu

 


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