O CABEÇA DE FERRO
Olavo Bilac
Nesse ano de 1782, em Minas, no mesmo lugar em que assenta hoje a cidade de Diamantina, as autoridades de Portugal, monopolizando para a Coroa portuguesa o comércio dos diamantes, eram implacáveis no seu despotismo.
Entre os trabalhadores empregados na extração, a miséria era grande. Quase todos os escravos sofriam fome, enquanto pelas suas mãos passavam milhões de pedras, que valiam quantias assombrosas, e iam enriquecer o tesouro português.
O trabalho era duro. Primeiro, era preciso descobrir o trecho do rio, em cujo fundo se esperava achar a jazida. Cavava-se ao lado dele um vale, forrado de tábuas unidas e calafetadas: Cercava-se depois o rio: desviavam-se as suas águas para o vale. Então, secava-se o leito assim descoberto. Quebravam-se as rochas que o forravam, tirava-se a camada inútil de terras e areias: e via-se logo, sob a forma de um cascalho feio e grosseiro, a preciosa mina, em que dormiam as grandes e rutilantes pedras preciosas. Muitas vezes, o trabalho ficava perdido: não se encontravam diamantes na porção explorada do rio, e era preciso recomeçar mais longe a mesma dura tarefa.
Tratados com um rigor intolerável, privados de tudo, sofrendo pela menor falta castigos horrorosos, trabalhando sem cessar de sol a sol, os desgraçados entendiam-se com os contrabandistas, a quem vendiam os diamantes que furtavam. As autoridades condenavam sem processo os acusados desse crime. Os contrabandistas, que eram conhecidos pelo nome de garimpeiros, eram perseguidos sem trégua pela tropa. Às vezes, desesperados, acossados pela patrulha da metrópole, os garimpeiros organizavam guerrilhas e resistiam. Corria o sangue de parte a parte.
Os escravos suspeitos eram condenados à morte, sumariamente. Não se abriam devassas. Não se admitiam defesas. Bastava uma simples denúncia. Alguns, amarrados a troncos de árvores, eram surrados até morrer; outros acabavam crivados de balas; outros expiravam de fome, no fundo de masmorras sem ar.
Em 1782, era Intendente dos Diamantes José de Meirelles, homem cruel que conseguia ser ainda mais tirano do que os seus antecessores. O povo dava-lhe o nome de Cabeça de Ferro. Violento, fez pesar sobre Minas a sua maldade. Quem por esse tempo viajava pela região, que ficava sob o domínio do Cabeça de Ferro, via, de espaço a espaço, corpos no chão, varados de tiro de espingarda, cadáveres de enforcados oscilando nos galhos das árvores. Eram as vítimas do Intendente.
Mas não eram somente os suspeitos do crime de contrabando que sofriam o peso do seu ódio. Bastava ter pena do sofrimento dos pobres escravos para ser considerado cúmplice deles. A cadeia do arraial estava constantemente cheia de inocentes, cujo crime único era o ter dado um pedaço de pão a um trabalhador faminto. O Cabeça de Ferro era onipotente. Quem ousava contrariá-lo, se escapava da morte, era degredado para a África, e deixava a família na miséria, porque todos os seus bens eram confiscados para o Estado. E, quando o Intendente atravessava o povoado, arrogante, de sobrecenho cerrado, seguido da multidão de seus guardas armados, o terror corria as ruas. Portas e janelas fechavam-se. Nenhum olhar atrevia a fitar o olhar do orgulhoso Senhor, que tinha nas mãos o destino de todo o povo.
Essa tirania já durava três anos, quando, por ocasião de se celebrar uma festa religiosa no arraial, veio para pregar o sermão, na Vila do Príncipe, um sacerdote modesto, — homem de rara virtude, cuja palavra ardente estava sempre cheia de bênçãos para os humildes e de maldições para os orgulhosos. Era o vigário Brandão. Ninguém imaginaria, vendo-o pequenino, fraco, de olhos postos no chão, tão pobremente vestido que causava dó, ser aquele o homem que nunca recearia dizer a Verdade, por terrível que fosse, aos grandes da terra. O povo, quando o viu chegar, acolheu-se sob sua proteção.
O vigário viu os arredores do povoado cobertos de cadáveres sem sepultura; viu as casas dos suspeitos incendiadas por ordem do Intendente; viu a cadeia cheia de infelizes, que gemiam sob o peso dos ferros, vítimas quase todos de acusações infundadas; e, com palavras duras, que o amor da justiça inspirava, intimou o Cabeça de Ferro a respeitar as leis da Humanidade. O Intendente sorriu. E a sua crueldade aumentou.
Chegou o dia da festa.
A igreja, cheia de povo, resplandecia de luzes. Quando o vigário ia falar, entrou o Intendente; seguia-o a sua guarda: e o implacável tirano, arrogante, caminhava de olhos erguidos, dominando com a sua presença temerosa a multidão que tremia.
O vigário começou a falar. A sua voz clara e colérica tinha uma majestade divina. Falou dos magistrados que apenas para oprimir os pequenos e os pobres sabiam usar do poder que a vontade de Deus lhe confiara.
O seu olhar não se afastava do ponto em que estava o Intendente, e o seu gesto, dirigido para ele, apontava-o como o causador da desgraça das famílias condenadas à orfandade e à fome; lançava-lhe em rosto o assassinato frio de tantos inocentes; condenava-o a vagar sozinho na terra, fadado a uma velhice de angústias e de remorsos, para pagar a sua desumanidade: e descrevia, ao vivo, o sofrimento dos que jaziam no fundo de masmorras escuras, dormindo sobre a lama, gemendo de sede, com os corpos chagados pela pressão das cadeias de ferro...
O povo todo, imóvel de assombro, diante de tamanha audácia, escutava em silêncio. O Cabeça de Ferro, com as faces acesas de cólera, tremia na sua cadeira. Levantou-se, cruzou os braços, e encarou o pregador.
Durante minutos, que pareciam séculos, esses dois homens — um, todo poderoso, temido, rico, arrumado, cercado de tropa, representando a autoridade despótica de El Rey — e o outro, fraco, pobre, sem armas, sem soldados, tendo apenas por si a Verdade, — longamente se fitaram em silêncio. Foi o homem poderoso que cedeu.
O Intendente baixou os olhos, com todo o corpo abalado de um tremor convulsivo. O povo murmurava. E o padre, sem tirar os olhos do criminoso, clamava:
— Ministro de Satanás! Como aferrolhas míseros inocentes nesse horrível calabouço, quando o seu crime só foi terem tirado da terra os tesouros que a Providência ali ocultou, para que igualmente a todos os homens servissem? Um dia, a inocência clamará contra ti, no tribunal divino, longe das paixões do mundo: e a maldição de Deus pesará sobre a tua cabeça!
Houve um movimento geral na multidão. Viram todos que o Intendente, de cabeça baixa, trêmulo e abatido, se encaminhava para a porta da Igreja. Seguiam-no os soldados da sua guarda: e o povo abria alas para deixar passar, humilhado com um réu, aquele que, havia pouco, passara sobranceiro como um deus.
Houve ainda quem temesse que, ao sair dali, o Cabeça-de-Ferro fosse preparar a sua vingança contra o atrevido que o injuriara, cobrindo de opróbrio e de vergonha.
Mas, no dia seguinte, soube-se no arraial, com alívio, que todos os que estavam presos injustamente tinham sido postos em liberdade; que os cadáveres que jaziam nos arredores sem sepultura, servindo de pasto aos corvos, tinham sido enterrados; e que a sorte dos criminosos, nos calabouços, tinha sido suavizada. E, de então por adiante, todo o povo respirou, vendo o Intendente reconciliado com a justiça e com a humanidade.
Porque, quando o amor do Bem e da Verdade palpitam na voz humilde de um justo, essa voz, por si só, é bastante para iluminar e purificar a alma endurecida de um tirano...