O BANDEIRANTE (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)
O BANDEIRANTE
Olavo Bilac
Quando, em 1664, Fernão Dias Paes Leme se embrenhou nos sertões de Minas, raros homens civilizados haviam pisado essas regiões quase de todo desconhecidas.
Fernão Dias Paes Leme já era nesse tempo um velho. Tinha oitenta anos. Mas a idade não conseguira alquebrar o seu corpo, nem enfraquecer dentro da sua alma intrépida a coragem e a ambição.
Diziam que, no Rio São Francisco, abundavam esmeraldas.
A terra virgem do Brasil já dava muito ouro e muitos diamantes: mas ainda ninguém arrancara do seu seio as belas e preciosas pedras verdes, que Fernão Dias Paes Leme ia procurar, arrostando todos os perigos.
Perigos de toda sorte!... As florestas estavam cheias de feras: porém, maior ainda do que a delas, era a ferocidade dos índios brutos. Além disso, nas margens dos rios, reinavam febres assassinas. Com as enchentes, as plantas apodreciam, depositadas nas lezírias, e desfaziam-se em miasmas. E tudo, — feras, selvagens e febres, — tudo conspirava contra os exploradores, defendendo a região, não deixando que a civilização dela tomasse posse.
Mas Fernão Dias Paes Leme só pensava na realização do seu grande sonho. Sonhava possuir as grandes riquezas acumuladas naquelas zonas longínquas. Passavam-lhe por diante dos olhos, quando a febre da ambição o alucinava, rios de pedras preciosas, rolando, rolando, com um brilho que cegava. Já se via senhor de montanhas de pedras verdes... E essa ambição o alimentava, abrasando-lhe o sangue, dando-lhe aos músculos um novo vigor e ao coração uma nova mocidade. Juntou um bando de companheiros decididos, e empreendeu a aventura arrojadíssima.
Eram mais de quinhentos. Quase todos já tinham explorado outras zonas de território, e estavam habituados àquela rude existência, de trabalhos sem fim, noites passadas ao relento, debaixo das grossas chuvas torrenciais, riscos sem conta, dificuldades sem número. Eram homens que essa vida tornara semibárbaros: convivendo com os animais ferozes e com os índios antropófagos, entendendo e falando os idiomas de várias tribos, acostumados a não temer a odiosidade dos povos indomáveis e as inclemências da natureza primitiva da América, tinham ficado corajosos como esses povos, rijos e primitivos como essa natureza. Quando a seca abrasava os matos, os bandeirantes, para mitigar a sede que os agoniava, bebiam o sangue dos animais que matavam. Comiam frutas, cascas de árvores, sapos, lagartos, cobras.
Não tinham bússola, não tinham armas aperfeiçoadas, não tinham remédios. Confiavam na sua boa estrela, e caminhavam ao acaso. Tinham de vadear torrentes, ladear pântanos, galgar serranias, atravessar florestas virgens. E a ambição e a coragem de Fernão Dias Paes Leme guiavam esses aventureiros intrépidos.
Dez anos durou a expedição. Enquanto caminhavam, de luta em luta, batalhando contra os índios, os bandeirantes iam, nos arredores do Rio São Francisco, lançando as bases de povoações, que são hoje cidades. Ao cabo desses dez anos, outros bandos tinham vindo juntar-se aos primeiros. Oito povoações tinham nascido, com edificações, surgindo como por encanto do solo, ao simples influxo da energia soberana de Fernão Dias Paes Leme. Quantidades fabulosas de arrobas de outro em pó e de imensos diamantes asseguravam aos aventureiros grande fortuna. E, quanto às esmeraldas que Fernão Dias buscava, apenas uma pequena quantidade delas fora colhida. E o velho chefe não se separava nunca da sacola de couro, em que guardava o precioso achado. Não era só o valor das pedras o que o fazia prezar aquela sacola: o que mais o satisfazia era o orgulho de ter sido o primeiro a descobrir esmeraldas nas terras da América.
Mas as forças o abandonavam. Esses dez últimos anos de vida tinham alquebrado o corpo do heroico velho. Enriquecido o seu bando de aventureiros, fixadas várias famílias nas povoações que fundara, Fernão Dias Paes Leme recolheu-se a Guaçuí, aldeia que, graças aos seus esforços, se desenvolvia e prosperava.
Aí morreu ele, serenamente, sem imaginar a glória que estava reservada para o seu nome. Antes de expirar, chamou o filho, e confiou-lhe a guarda da sacola de esmeraldas. Recomendou-lhe que tornasse ao litoral, e, em viagem para a metrópole, para lá levasse as primeiras pedras verdes fornecidas pelas jazidas do Brasil.
O filho enterrou-o, piedosamente, em plena selva, no meio daquela admirável natureza cujos segredos o seu olhar atrevido fora o primeiro a devassar. O cadáver do velho bandeirante repousa em lugar ignorado hoje. Ninguém sabe em que arredor de Guaçuí, perto das margens fecundas do esplêndido São Francisco, está a ossada de Fernão Dias Paes Leme, — o caçador de esmeraldas. Mas, a memória dele vive perpétua nas regiões que a sua ousadia desbravou.
O filho do explorador, guardando a sacola de esmeraldas, não sabia que decepção o esperava: as pedras verdes eram simples crisólitas sem valor.
Mas o ouro e os diamantes adquiridos, durante os dez anos de expedição, lhe davam uma fortuna, capaz de consolar facilmente dessa desilusão. E, se Fernão Dias Paes Leme não teve a glória de descobrir esmeraldas no Brasil, teve em compensação a glória mais alta de ter lançado a semente da civilização nos sertões de Minas Gerais, fazendo oito cidades rebentarem de seu solo inculto.