O ANJO DA GUARDA DA INFÂNCIA
Júlio Dinis
Desci dor celestes coros, Por Deus mandada escutar
Da infância as queixas e os choros, Para lhos ir confiar.
Desci. Na terra, nos mares
Tanta miséria encontrei,
Que os meus magoados olhares
De terra e mar desviei.
Desci. E tantos gemidos, Tão dolorosos ouvil
Que, turbados os sentidos, Quis recuar… mas desci.
Nesta colheita de dores Pelo mundo todo andei, No pranto dos pecadores As
minhas vestes molhei.
Vagueando dias e dias
Chegara à Judeia enfim,
Quando um clamor de agonias
Veio de longe até mim.
O Sol, o Sol inflamado Destas terras orientais Tinha no disco afogueado
Não sei que estranhos sinais.
Soavam menos distantes
Sinistros brados de dor
Choros de mães e de infantes
Cantos de morte e terror.
Vi anjos de asas nevadas
Em bandos subir ao Céu,
Quais pombas amedrontadas
Fugindo à voz de escarcéu.
«Onde ides? Quem vos persegue ? A que tormentos fugis?»
Um que triste o bando segue, Estas palavras me diz:
Somos as almas de infantes Mortos em guerra feroz; Inda das mães
delirantes Nos chama a sentida voz.
« Só a materna saudade
Nossa carreira detém,
Embora no Céu, quem há-de
Esquecer o amor de mãe?»
Disse e o semblante formoso
Com as asas encobriu,
E ao bando silencioso
Silencioso se uniu.
Eu segui. Na ampla cidade
Aterrada penetrei…
Ai, da fera humanidade
Os meus olhos desviei!
Que cena! Corre nas praças
Sanguinária multidão
Como nuvem de desgraças
Semeando a desolação.
Caem por terra, sem vida, Tenras crianças às mil,
E uma turba enfurecida
Corre à matança, febril.
As mães pálidas, chorosas, Suplicam, pedem em vão!
Nessas feras sanguinosas Não palpita um coração.
Outros tentam, em delírio, Os seus filhos disputar
E com eles no martírio
Gostosas se vão juntar.
Sobre a terra ensangüentada
Eu soluçando, ajoelhei,
E de intensa dor magoada,
A Deus piedade implorei.
Findava a prece, e uma estrela
No horizonte despontou,
Pura, cintilante, ela
O caminho me traçou.
À humilde e escondida estância
Da venturosa Belém
Cheguei; vi um Deus na infância
Nos ternos braços da mãe.
Minha colheita de dores
Naquele berço depus,
Da humanidade aos rigores
Pedi remédio a Jesus.
No olhar do divino infante
Raiou luz e fulgor,
Foi a aurora radiante
Que anuncia um redentor