Amâncio “pegando” uma estrada na caminhada sem objetivo
Não lembro ao certo quantos alunos éramos na sala de aulas da quarta série ginasial do tradicional, diferente e magnífico Liceu do Ceará. Mas lembro, sim, éramos muitos e nos conhecíamos todos. Éramos amigos, sem as baitolagenzinhas do “bullying”! Se precisasse, a gente saía era na porrada mesmo.
O ano letivo tinha início quase sempre na segunda quinzena de fevereiro. Em junho, ao fim das provas escritas e orais, começavam as férias por todo o mês de julho. Tudo recomeçava no primeiro dia de agosto, a não ser que aquele dia fosse um sábado ou domingo.
Todos que já alcançaram a faixa etária dos 50, e conseguiram ultrapassagem pela esquerda sem causar problemas para quem vem na contramão para chegar aos 60, 70 e mais alguma coisa, sabem que “quem procura, acha” e que “quem semeia, colhe”. Sabem mais ainda: “é para a frente que a gente anda”!
Pois, Amâncio Batista de Queiroz, aluno número 4 no livro de chamada, era natural de Quixadá. Quinto filho da abastada família dos Queiroz, proprietária de quase tudo na “Terra dos Monólitos”, da “Pedra da Galinha Choca” e do açude de Cedro. Como se tornaram proprietários do que ali possuíam, poucas pessoas sabiam ou faziam questão de saber – naquele tempo, sem internet, sem “zapzap” todos se preocupavam mesmo era com o trabalho e o sustento da família.
Por falta de escolas municipais na cidade, Amâncio, que podia e tinha condições financeiras para estudar na Europa, preferiu mesmo foi o tão bom quanto os melhores, Liceu do Ceará.
Presente entre os melhores alunos da classe, Amâncio tinha uma mania – hoje, os frescos chamam de “hobby”. E ainda tem que ser escrito em inglês. Viadagem pura. Coisa de quem gosta de sentar na boneca.
Amâncio gostava de andar. Era “andarilho”. Quem conhece Fortaleza, certamente sabe a distância que existe entre o bairro Benfica, onde Amâncio residia numa pensão de amigos dos Queiroz, para o Liceu do Ceará. Amâncio ia caminhando, diariamente, do Benfica para o Liceu. Ia e voltava. Andar, para Amâncio tinha o mesmo prazer que “tocar uma bronha” com as duas mãos. E gozar.
Eis que terminam aos aulas do primeiro semestre do ano, com a grade curricular rigorosamente cumprida. Após as provas escritas e orais do meio do ano, as férias.
Pernas, pra que te quero?!
A maioria não tinha mesmo para onde ir. Naquele tempo, viajar para a Europa não era coisa tão fácil. A gente aproveitava para passar uma semana com os avós no interior, e outros até que procuravam atualizar seus álbuns de figurinhas.
Mas, Amâncio era diferente. Era outra pessoa. E tinha para onde ir. As férias começavam no dia 15, e no dia 17 ele já estava na estrada.
É foi isso mesmo que você leu: “na estrada”!
Pedra da Galinha choca em Quixadá ao lado do açude Cedro
Quem serviu ao Exército, sabe bem a dimensão do que o Amâncio fazia. Quem serviu ao Exército, quando fazia “marchas” de 20 km, cansava. Havia até quem “baixasse hospital” e ficava até dois ou três dias em recuperação.
Amâncio, não. Amâncio era “andarilho profissional”. E, pasmem: de Fortaleza até Quixadá, são exatos 167 km. É mole?
Não, não é mole não!
Parece mentira, mas Amâncio levava até três dias caminhando nesse percurso. Claro que parava para descansar e, às vezes, também para dormir em alguma cidade. Mas, na manhã seguinte, após o café, botava o pé na estrada.
Repito: Amâncio era “andarilho profissional”!
Saía da pensão onde morava, no Benfica. Seguia pela Avenida 13 de Maio, até encontrar a Rua Rio Branco, no antigo São João do Tauape. Seguia na direção de Messejana, Horizonte, e pegava a BR-116 até Pacajus. Ali, o destino era Quixadá, sempre pela BR-122. Não caminhava durante a noite, embora a temperatura fosse mais amena. Ele preferia parar em algum lugar, onde descansava, jantava e dormia.
Contava Amâncio, que era comum esse diálogo com alguém que passava por ele, na estrada:
– Tá indo pra onde, meu jovem? Perguntava alguém, com a intenção de oferecer ajuda.
– Ainda não sei pra onde vou! Respondia Amâncio, sem pretender receber ajuda.
– Quer uma carona? Perguntava o motorizado.
– Não! Não quero. Muito obrigado! Respondia Amâncio e continuava a caminhada.
Quando se aproximava de Quixadá, apesar de ser ali a “Terra dos monólitos” (pedras, muitas pedras), o clima era mais ameno. Não. Não era mais ameno. É que Amâncio sabia que já estava chegando e aquilo mudava o seu astral.
Como todo bom cearense, Amâncio também tinha o seu veio cômico e gostava de umas respostas engraçadas e cheias de ironia.
Ele próprio contou (na volta das férias) que, certa vez, quando já se sentia em Quixadá, um passante motorizado parou o carro e perguntou:
– Tá indo pra onde, jovem?
– Tô indo botar meus ovos para a galinha chocar!
No fim das férias, claro, os familiares não permitiam que Amâncio retornasse a pé. Afinal, voltava sempre na véspera do início das aulas.