RODRIGO CRAVEIRO
Publicação: 16/03/2019 04:00
Da entrada da Mesquita Masjid Al-Noor, Brenton Harrison Tarrant, 28 anos, começou a disparar o fuzil semiautomático de forma intermitente: assassino perseguiu vítimas, que rastejaram em busca de ajuda, e atirou várias vezes
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“Eu sou o deus do fogo do inferno, e eu busco você! Fogo, eu o levarei para queimar.” A música Fire, da banda britânica The crazy world of Arthur Brown, ecoava de dentro do carro de Brenton Harrison Tarrant, 28 anos, quando ele tornou a disparar contra a cabeça de uma muçulmana, caída ao lado do meio-fio. Minutos antes, às 13h45 de ontem (21h45 de quinta-feira em Brasília), Brenton tinha desembarcado do veículo, em frente à Mesquita Masjid Al-Noor, em Christchurch, com um fuzil e uma pistola na mão. Ao som de uma canção de exaltação de Radovan Karadzic — ex-líder sérvio-bósnio responsável pelo genocídio em Srebrenica (1995) —, ele conduziu um massacre no interior do templo islâmico e dirigiu 5km até a Mesquita Linwood Masjid. Matou 49 pessoas, 41 delas na primeira mesquita, e feriu 48. O atentado, transmitido ao vivo pelo Facebook (leia na página 13), impactou a Nova Zelândia, nação pluralista e acolhedora de religiões. Um vídeo gravado pelo celular mostra policiais retirando o atirador de dentro do carro e o algemando.
O horror causado por Brenton, que levava uma câmera acoplada ao capacete, repercutiu na comunidade internacional e instigou um debate sobre tolerância religiosa e flexibilização de armas. A Mesquita Masjid Al-Noor reunia ao menos 300 pessoas, incluindo mulheres, no momento do ataque. “O que houve lá foi inaceitável. Imaginar esse tipo de coisa acontecendo com muçulmanos, com inocentes”, lamentou ao Correio o gerente de vendas Mohan Ibn Ibrahim, 27 anos, sobrevivente do massacre (leia o Depoimento).
A barbárie foi precedida pela publicação, na internet, de um manifesto racista de 74 páginas em que Brenton se identifica como um homem branco normal inspirado pelo supremacista norueguês Anders Behring Brevik. Em 22 de julho de 2011, Brevik cometeu uma série de atentados que mataram 77 pessoas e feriram 51 em Oslo e na Ilha de Utoya, na Noruega. No documento, Brenton conta que pretendia “fazer uma barbárie para evitar outra maior” e justifica o ato como uma tentativa de “ensinar os invasores que nossa pátria nunca será sua”.
O australiano Brenton Tarrat é formalmente acusado pela Justiça neozelandesa: impassível diante do juiz
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Brasil
Intitulado The Great Replacement (“A Grande Substituição”) — em referência a uma teoria elaborada pelo escritor francês Renaud Camus, segundo a qual “os povos da Europa estão sendo substituídos” por populações de imigrantes não europeus —, o manifesto cita o Brasil. “O Brasil, com toda a sua diversidade racial, está completamente fraturado como nação, onde as pessoas não se dão umas com as outras e se separam e se segregam sempre que possível”, escreveu.
“O que houve em Christchurch foi um ato extraordinário de violência sem precedentes”, comentou a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, ao citar “o dia mais sombrio” da história do país. A premiê neozelandesa avisou que as leis de acesso a armas mudarão depois da tragédia. “Enquanto estamos trabalhando para entender a cadeia de eventos que levaram à posse dessas armas, eu posso lhes dizer uma coisa certa agora. Nossa legislação sobre armas mudará”, disse Jacinda. A Nova Zelândia possui um histórico de poucos incidentes com armas de fogo. Em 2017, o país registrou 35 assassinatos. De acordo com a chefe de governo, Brenton tinha licença para adquirir armamentos.
A primeira-ministra enviou um recado aos extremistas: “Vocês podem ter nos escolhido, mas nós rejeitamos vocês”. O presidente dos EUA, Donald Trump, telefonou para Jacinda e ofereceu condolências ante os “monstruosos ataques terroristas”. “Esses locais sagrados de adoração se transformaram em cenas de matança maligna”, declarou. No entanto, Trump negou que o supremacismo branco seja uma ameaça importante. “Na realidade, não. Acredito que se trata de um pequeno grupo de pessoas.”
Algemado e com uniforme de presidiário, o militante de extrema direita não demonstrou emoção ao ouvir a acusação de homicídio e fez um gesto usado por supremacistas para indicar poder. Brenton ficará preso até a audiência de 5 de abril. Outras acusações devem ser apresentadas, e a promotoria pedirá pena perpétua. Mais duas pessoas estão sob custódia.
Influência
Em entrevista ao Correio, Paul Spoonley — professor da Massey University, em Palmerston North (Nova Zelândia) — disse crer que Brenton foi profundamente influenciado por eventos internacionais. “Ele é parte de um movimento internacionalista da direita alternativa e do supremacismo branco. Também sustenta fortemente os argumentos da ‘teoria da substituição’, a ideia de que os brancos estão perdendo o poder no mundo e sendo substituídos por muçulmanos. É uma posição comum da extrema direita”, admitiu o autor de Politics of Nostalgia: Racism and the Extreme Right (“Políticas da Nostalgia: racismo e extrema direita”).
Douglas Pratt, especialista em terrorismo religioso pela Universidade de Auckland e autor de Religion and extremism: Rejecting diversity (“Religião e extremismo: rejeitando a diversidade”), afirmou à reportagem que a imagem de uma sociedade pacífica, tolerante e pluralista ignora expressões religiosas e políticas de antipatia, e de franca hostilidade, em relação aos muçulmanos. “O contexto da tolerância benigna da Nova Zelândia está sendo testado.” O Brasil divulgou nota em que “condena veementemente os ataques terroristas direcionados à comunidade muçulmana de Christchurch”. “O Brasil reitera firme repúdio a todo e qualquer ato de terrorismo, independentemente da motivação”, afirmou o comunicado do Itamaraty.
Eu acho...
“Os atentados contra as duas mesquitas foram um eco do massacre perpetrado pelo norueguês de Anders Breivik (em 22 de julho de 2011). Tal extremismo violento acredita que a ação tomada servirá como gatilho para um movimento ainda maior, capaz de remover ou eliminar os imigrantes, e especialmente, os muçulmanos. Como estratégia, isso inevitavelmente fracassa, pois geralmente produz reação oposta, ao provocar apoio às comunidades de muçulmanos e migrantes.”
Douglas Pratt, especialista em terrorismo religioso pela Universidade de Auckland (Nova Zelândia)
Depoimento
“É dificil ver alguém morrer”
“Tudo ocorreu entre 13h42 e 13h45 de ontem (sexta-feira). As orações teriam início às 14h. Eu estava dentro da Mesquita Masjid Al-Noor, no lado direito. Ele começou a atirar desde o portão principal. Foi algo tão alto (o barulho), que imaginei tratar-se de um curto-circuito. No entanto, o som era intermitente. Alguns poucos de nós conseguimos sair da mesquita usando a porta do lado direito. Nós corremos em direção ao quintal, onde normalmente as pessoas estacionam seus carros. Tive de correr entre 700m e 800m, antes de pular o muro. O barulho dos tiros não parou durante 10 a 15 minutos.
O som era muito alto. Quando a polícia chegou, corri até o outro lado da rua. Eu vi uma pessoa baleada no peito. A polícia veio e fez os primeiros socorros. Eu não consegui discernir claramente se o atirador dizia alguma coisa. Também não me aventurei a olhar para trás. Eu não posso explicar como o som dos tiros era alto. Depois, vi no vídeo que ele escutava músicas. Durante minha fuga, não vi corpos, pois não vi a parte de trás da mesquita, onde estavam mais pessoas. Ele estava matando a partir da porta principal. Havia muitas crianças e mulheres dentro da mesquita. Famílias inteiras frequentavam ali. Eu conhecia muitas das pessoas que morreram. É realmente muito triste ver alguém morrer diante de seus olhos.”
Mohan Ibn Ibrahim, 27 anos,
gerente de vendas, sobrevivente do massacre na Mesquita Masjid Al-Noor, em Christchurch