Há algum tempo, Ney Matogrosso subverte o processo artístico. Ele sai em excursão e, após maturar suas músicas de trabalho, vai para a gravação do álbum com o repertório das apresentações. Isso ocorreu com Bloco na rua, turnê que gerou CD homônimo, em 2019, e o manteve na estrada até 2020, com a interrupção imposta pela pandemia. Em casa, ao se ver diante de uma quarentena, inquieto, o cantor se debruçou sobre outro projeto. Surgia ali Nu com minha música, o álbum recém-lançado.
Diante das constantes solicitações, Bloco na rua mantém-se em cartaz e tem apresentações previstas até junho de 2022. Por ter assumido esses compromissos, Nu com minha música não deve ir aos palcos no próximo semestre. Assim, os fãs só poderão ouvir as 12 faixas no Spotify. Posteriormente, o registro sairá no formato físico com encarte, no qual estarão em destaque letras das canções, fotos do ídolo e informações complementares.
Ao contrário do que o título possa sugerir, a capa traz apenas o rosto marcante de Ney. Nos textos de algumas composições, porém, aflora a sensualidade característica do artista. Ele chegou a pedir a Vitor Ramil para escrever nova estrofe de Noturno, que resultou em: “Eu vivo cada segundo/ De cada nova despida/ Tudo é nudez e passagem/ Tudo é visagem e amor/ Eu ouço cada palavra/ De cada frase não dita/ A minha boca era a tua/ A tua boca era minha”. Já em outras, como Faz um carnaval comigo(Pedro Luís e Jade Beraldo), o erotismo é levado às últimas consequências: “Não quero saber da hora/Tá rolando, tá agora/Te devoro, me devora.”O álbum foi antecedido por um EP que trazia Nu com minha música (Caetano Veloso), Miunicórnio azul (Sylvio Rodriguez e Pablo Milanés), Se não for amor eu cegue (Lenine e Lula Queiroga) e Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho), que chegou às plataformas digitais no dia 1º de agosto, data em em que Ney comemorou 80 anos.
Todo o repertório ele trouxe de seu baú musical, ao qual recorre sempre que planeja algum show ou disco. Lá, estão bem guardadas canções de diferentes estilos e períodos, descobertas de variadas maneiras. Todas as 12 gravações são inéditas na sua voz. A mais nova delas é Estranha toada, do jovem compositor pernambucano PC Silva, que lhe foi apresentado durante uma festa na casa de Zé Maurício Machline, criador e produtor do Prêmio da Música Brasileira.
Entre as selecionadas estão os clássicos Quase um segundo, balada pop de Herbert Vianna; Espumas ao vento (Aciolly Neto), gravada originalmente por Raimundo Fagner; e Sua estupidez (Roberto e Erasmo Carlos), que Gal Costa registrou no lendário LP Fatal, do começo da década de 1970. A elas se juntam a pouco conhecida Boca (Rafael Rocha) e Sei dos caminhos, precioso resgate da obra do grande Itamar Assumpção.
Com o intuito de oferecer um trabalho que se caracteriza, ainda mais, pela diversidade, Ney Matogrosso convidou Leandro Braga, Marcello Gonçalves, Ricardo Silveira e Sacha Ambach, renomados instrumentistas que o têm acompanhado em diferentes projetos, para criarem arranjos das canções, reunidas em três blocos. Foram eles que escolheram os músicos para, em diferentes formações, acompanharem o cantor.
Ao Correio, Ney se desnudou, metaforicamente, para falar do processo de criação do novo álbum e do momento de retomada das apresentações.
Entrevista / Ney Matogrosso
Quando você decidiu
gravar este disco?
Assim que interrompi a turnê do Bloco na rua, por conta da pandemia, voltei para casa e pensei com que me ocuparia durante a quarentena. Então, fui rever a lista de músicas que venho fazendo há algum tempo já pensando num novo disco. A lista é grande e dela fiz a escolha desvinculada de estilos. São canções que ainda não havia gravado, nem cantado em shows.
Quais foram as primeira selecionadas?
Nu com minha música, do Caetano; Sua estupidez, de Roberto e Erasmo; e Gita, de Raul Seixas, já estavam na minha mira; assim como Espumas ao vento, que tinha ouvido na voz do Fagner.
Ao imprimir suavidade em Sua estupidez, quis diferenciar da interpretação de Gal Costa,
no CD Fatal?
Não vejo na letra algo que tenha a ver com uma briga, ou desentendimento de um casal, mas, sim, a busca de aconchego. Por isso sugeri o arranjo que me levou a interpretá-la com suavidade.
Quando gravou o álbum e por
que deu como título o nome
da canção do Caetano?
As gravações ocorreram em junho último e a escolha de Nu com minha música tem a ver com a letra, na qual o Caetano se reporta às turnês, algo tão presente em minha vida, desde o início da carreira, há 50 anos.
Como era um projeto de estúdio, com canções inéditas na sua voz, optou por, inicialmente,
lançar um EP?
Este é o meu primeiro disco pela Sony Music, e o pessoal da gravadora sugeriu que eu lançasse o EP, no dia 1º de agosto, quando completei 80 anos.
Você, que perdeu vários amigos durante a epidemia do HIV, como viu a afirmação do Bolsonaro que a vacina pode transmitir aids?
Não consigo entender como uma pessoa que ocupa a Presidência da República é capaz de proferir uma asneira como essa, que só reafirma seu negacionismo e o seu preconceito.
Lançar este trabalho no momento em que a cultura vem sendo aviltada não é temerário?
A cultura brasileira é muito forte e supera todos os obstáculos que lhe são impostos. Nesse retorno das atividades artísticas, sabe-se que, com o devido cuidado, as pessoas estão prestigiando os shows, as peças teatrais, os filmes e as exposições.
Já retomou a turnê de Bloco na rua?
Retomei com um show em São Paulo e estou com a agenda cheia até junho de 2022. Neste mês, faço apresentações em capitais do Nordeste e, em dezembro, aqui no Rio. Também em dezembro faço um show com renda para o Instituto Cazuza, no Hotel Emiliano, em Copacabana. Quero voltar a Brasília, onde já estive duas vezes com o Bloco na rua.