RIO — Com seus 94 anos de vida, 70 dos quais dedicados à Estação Primeira de Mangueira, é natural que tudo relacionado a Nelson Sargento seja contado às décadas. Um exemplo é o violão que acompanha o cantor e compositor há mais de 50 anos. O instrumento foi comprado às pressas, de segunda mão, para que pudesse integrar o show “Rosas de Ouro”, organizado por Hermínio Bello de Carvalho no Teatro Jovem, em Botafogo, em 1965.
— O Elton ( Medeiros ) foi em Mangueira e deixou um recado para eu ir ao Teatro Jovem, para um trabalho. Como eu era pintor de paredes na época, achei que seria para pintar o teatro. Só quando cheguei lá soube que precisavam de mais um compositor de samba para o grupo do espetáculo. Não tinha violão, e comprei este aí, como está agora, com bandeira do Brasil e tudo — recorda Nelson Sargento. — Continuei pintando as minhas paredes, mas dali em diante fui conhecendo mais gente e comecei a me profissionalizar.
Um dos encontros proporcionados pelo espetáculo foi com outro patrimônio da música popular brasileira, Paulinho da Viola, na época com 22 anos. Os dois integravam o quinteto formado com Medeiros, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho — dois anos depois, Nelson e os demais formariam o conjunto Os Cinco Crioulos, com Mauro Duarte no lugar de Paulinho.
— No Rosas de Ouro, vi aquele garoto e mandei: “Você compõe? Canta um samba seu aí”. E ele começou: “Tinha eu 14 anos de idade, quando meu pai me chamou...”. Cheguei a duvidar que a música fosse dele, mas o Jair do Cavaquinho confirmou e ainda disse que de onde saiu aquela tinha mais. O Paulinho é meu ídolo — derrama-se o mangueirense.
'O maior griô do país'
Fundador dos Timoneiros, que voltam a desfilar neste ano após uma interrupção em 2018 por falta de patrocínio, o jornalista Vagner Fernandes faz referência aos versos do clássico “Agoniza, mas não morre” para explicar a homenagem ao seu autor.
— Seu Nelson é o maior griô da país, é o narrador e a personificação da narrativa. Ele resiste e enfrenta as intempéries — enaltece Fernandes. — Como ele, o Timoneiros é do time da resistência. Pela falta de patrocínio, que afeta outros blocos, apostaram que fôssemos sucumbir. A gente agonizou, mas contrariamos o bolão de apostas. Não morremos.
A importância do cantor e compositor para a cultura negra também foi fundamental para a sua escolha como Zumbi no enredo da escola em 2019, “História para ninar gente grande”, que vai celebrar heróis populares muitas vezes esquecidos nas versões oficiais, do líder quilombola à vereadora assassinada Marielle Franco. Nelson terá a companhia de outros mangueirenses ilustres, como Alcione, interpretando a guerreira Dandara, e Leci Brandão, como Luísa Mahin, líder da Revolta dos Malês.
— Hoje vemos tentativas de desqualificar, sem qualquer fundamento, figuras históricas como Zumbi dos Palmares. Seu Nelson vai emprestar sua dignidade e realeza para representar este personagem — comenta Vieira. — A Mangueira foi fundada quando ele tinha quatro anos. Ao entrar na avenida com esta história viva do samba, a escola já sai ganhando nota 10 num quesito que não pode ser mensurado.
A reverência à trajetória artística e pessoal não prende Nelson Sargento ao passado. Desde o ano passado, o cantor, compositor, escritor e pintor acrescentou mais uma função à lista: youtuber. Com 28 vídeos até o momento, o seu canal traz mergulhos do mangueirense em seu acervo discográfico e entrevistas com outras referências do samba, a exemplo do portelense Monarco.
A música ocupa boa parte de suas madrugadas (“Sambista nunca acorda antes das 10h da manhã, ele vai dormir nessa hora”). “Ouvidor compulsivo”, como se define, Nelson busca em canções antigas inspirações para projetos futuros, como um livro de frases ou um cordel com a história da Mangueira.
Mesmo com a limitação dos movimentos, causada pela artrose que ataca os joelhos, o cantor e compositor não planeja reduzir o ritmo. Com a intenção de lançar um disco de parcerias inéditas com Agenor de Oliveira até 25 de julho, data de seu aniversário de 95 anos, ele tem agendada para setembro uma série de shows no Japão, em sua a quarta viagem ao país.