23 de outubro de 2020 | 05h00
O jornalista e escritor Nelson Motta resolveu voltar às suas memórias para investir em um novo livro de histórias. Diferentemente de Noites Tropicais, lançado em 2009, em que escrevia em primeira pessoa, seu exercício aqui foi de redigir um texto na terceira pessoa do singular. Ou seja, ele se faz de narrador do próprio personagem, uma espécie de jovem predestinado que está, por muita sorte, nos lugares e nas horas certas.
Motta constrói uma longa coleção de histórias, indo a momentos já visitados e outros inéditos de sua carreira. De um tempo em que jornalistas e artistas tinham uma proximidade irrestrita e sem pudores dos limites éticos que marcariam a profissão a partir do final dos anos 1980, eles muitas vezes se tornavam parceiros de letra e música, amigos e confidentes. “Eu acabei fazendo muitos amigos a partir da coluna diária que escrevi para o jornal O Globo por dez anos.” Motta criou seu próprio mandamento, e talvez tenha sido um caso único de crítico a conseguir manter relevância no jornalismo ao mesmo tempo que alimentou amizades entre cantores, cantoras e compositores. Em geral, críticos mais mordazes não terminam a vida com muitas amizades. “Eu sempre achei que deveria tratar bem de minhas fontes. Jamais vou perder um amigo por causa de uma notícia. Dava espaço a tudo o que eu gostava e desprezo ao que não gostava.” Caetano Veloso reconheceu o balé de Motta: “Foi o único crítico que se estabeleceu sem esculhambar ninguém”.
A ideia de De Cu Pra Lua, o nome do livro com a expressão que Nelsinho ouviu tantas vezes em sua carreira, veio depois de suas pesquisas sobre a origem da sorte das pessoas. Afinal, o que diriam os espiritualistas diante de um lavrador atingido por um raio duas vezes e que sobrevive nas duas? “É algo totalmente aleatório, incontrolável e que passa por crenças. Seria sorte ou milagre?” Ele mesmo se considera um desses sortudos, e foi por aí que o livro seguiu. A narrativa em terceira pessoa, diz, o fez refletir mais sobre si mesmo, com liberdade e algum distanciamento maior.
Ainda que não desça aos detalhes, Nelsinho narra casos íntimos. Em alguns, trocou nomes para não ter problemas com a Justiça. Em outros, manteve os personagens com seus nomes verdadeiros para que as histórias não deixassem de ter brilho às custas de um anonimato. Com Zélia Cardoso de Mello, ministra da Economia do governo Fernando Collor de Mello, uma das responsáveis pelo traumático confisco da poupança do Plano Collor, de 1990, Nelsinho teve um romance, ou quase isso. A forma como eles se aproximam é narrada em uma das partes que deve fazer o livro ganhar repercussão.
Ao ser convidado pelo diretor de cinema Walter Salles para participar como roteirista e consultor de um especial que reuniria João Gilberto e Tom Jobim em um show no Teatro Municipal do Rio, a ser gravado pela Globo e dirigido por Boninho, Nelson entrou em uma enrascada sem saber. Animado, Nelson propôs, além de usar as imagens do espetáculo, colocar também depoimentos gravados com artistas como Arnaldo Antunes, Herbert Vianna e Marina Lima, todos falando de João.
Ao voltar para casa, em Nova York, o produtor começou a receber de Waltinho faxes nervosos. O problema é que João Gilberto não queria mais participar de um especial com depoimentos, dizendo que as pessoas só queriam se aproveitar dele. Depois de falar “cobras e lagartos” de Nelsinho para Walter, pediu que seu nome fosse retirado dos créditos e desligou o telefone. Por sua vez, Nelson também ficou furioso com João e resolveu escrever um fax dizendo ao baiano que o dom que ele tinha não lhe pertencia, mas que havia sido emprestado por Deus, e que era “intolerável tal comportamento com amigos que só queriam ajudá-lo”. Uma briga feia que tempos depois seria desfeita, com João e Motta viajando juntos. “No fundo e na verdade”, escreve no livro, “o que poderia haver de mais interessante para dizer ou mostrar do que um concerto de Tom Jobim e João Gilberto?”
A história do dia em que Nelsinho lida com assaltantes em sua casa também fica impagável, quando um dos encapuzados pergunta se Nelson não tem em meios aos seus discos um CD do Phil Collins.