“Uma furtiva lágrima” Autora:Nélida Piñon Editora: RecordPáginas: 320 Preço: R$ 49,90Cotação: Bom
“Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano e me assegura que assim prossigo na contagem dos minutos da vida alheia”, registra Nélida Piñon, 81 anos, num dos textos iniciais do livro de ensaios “Uma furtiva lágrima”. Constituído de reflexões, observações do cotidiano, reminiscências e exercícios de escrita, o novo livro da imortal da Academia Brasileira de Letras usa a literatura como chave para decifrar a si mesma e ao mundo. A autora de “A casa da paixão” e “A república dos sonhos” produz uma arqueologia de afetos, de leitura e conhecimento, de triunfos e perdas, do álbum de família.
Não se trata essencialmente de um diário de memórias, e sim de uma coletânea que tem a memória como fio condutor. Aos 81 anos, Nélida escreve com liberdade e vigor, dando forma a breves testemunhos nos quais exalta a existência física e as experiências subjetivas, num confronto contínuo com a finitude.
Em “Sentença”, por exemplo, rememora um período de angústia, no qual o diagnóstico de um câncer lhe condenou a, no máximo, um ano de vida. Pela primeira vez convivendo “com a ideia da partida”, reservou-se ao silêncio e ao desejo de que “o sofrimento não danificasse sua dignidade”, até que o veredito revelou-se equivocado. “Quase três anos depois, estou bem. Resisti, vivo, penso. Imagino, sobretudo escrevo. Eis os segredos da vida”, declara.
Com sabor de ficção
Nélida impõe uma dicção íntima, quase confessional, narrando com elegância e delicadeza, embora suas frases transmitam potência e magnetismo. Tal domínio conduz o leitor em incursões pelo passado, em textos nos quais a autora visita a Galícia, terra dos seus avós, antes de buscarem exílio no Brasil, e a sua infância, em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, considerado “seu feudo espiritual”. “Sou mulher, brasileira, escritora, cosmopolita, aldeã, criatura de todas as partes, de todos os portos”, autodefine-se.
Nesses casos em que se encontra com a natureza de seus antepassados, a realidade parece beber da fonte da ficção, onde verdade e imaginação insinuam se cruzar. Trata-se de uma matriz afetiva através da qual dialoga com os entes queridos e eterniza o amor pelos cães Suzy e Gravetinho Pinõn, a quem dedica o livro in memoriam. Ainda nessa seara de sentimentos, Nélida homenageia escritores, reverencia obras que marcaram sua vida, e narra episódios saborosos, como o dia em que foi eleita para a Academia Brasileira de Letras, num quase imbróglio envolvendo Afrânio Coutinho, Rubem Fonseca e Lygia Fagundes Telles.
Outros textos, com tonalidades academicistas, dão conta de reflexões sobre filosofia, teologia e mitologia grega. Fazem parte de um repertório que extrapola os limites da prosa livre, ganhando ares de manifesto e alvos certos, a exemplo do ensaio “Política”, no qual protesta contra “uns pobres-diabos revestidos de falsa magia”.
O ponto alto, contudo, compete aos textos de expressões mais densas e complexas, quando a autora olha para o fundo de si. Expõe suas fragilidades, seus anseios, sua solidão, rivalizando a tudo com o escudo da escrita, com a força da literatura que a permite ser “múltipla, muitas”, ao mesmo tempo que única, singular. Uma senhora escritora. E um livro, que representa um legado.