|
|
"Eu sou a única transgênero, negra, favelada licenciada em matemática da América Latina de que se tem notícia. Muitas meninas queriam ter a oportunidade que eu tive e infelizmente não tiveram"
|
Era mais um dia em que Natalha Nascimento andava pela Rodoviária do Plano Piloto. Mais um dia de olhares de desaprovação e mais um dia em que, ao passar em frente a uma pastelaria, passou a ouvir ofensas dos funcionários. Naquele 26 de abril, porém, a mulher negra e transexual cansou-se de ouvir calada os xingamentos.
Parou e perguntou por que aqueles homens sempre se comportavam de maneira tão hostil com ela. Então ouviu de um deles: "Eu faço piadinhas quantas vezes eu quiser, seu veado". A frase, somada ao longo tempo de humilhação, fez Natalha perder o controle. "Aquilo foi o estopim. Eu cuspi nele", recorda, dois anos e meio depois.
A reação de Natalha, hoje com 36 anos, fez o homem partir das ofensas para a agressão física. "Eu lembro que caí de costas e que meus cabelos estavam presos na mão dele. Depois, levei um chute na costela", conta. Os outros funcionários apenas olhavam. Foi uma voz distante que a salvou. "Alguém disse para ele não fazer aquilo, que era covardia."
Ela só buscou uma delegacia dois dias mais tarde, após uma conversa por telefone com a mãe, que mora no Pará. Depois, Natalha foi ao Conselho de Direitos Humanos, e a denúncia virou processo. "Eu acionei a Justiça porque não vi nenhum crime ou erro cometido por mim que motivasse o comportamento dos funcionários", explica.
Em uma audiência conciliatória, foi oferecida uma indenização, mas Natalha recusou o dinheiro. Queria um pedido de desculpas e a oportunidade de dar uma palestra sobre diversidade e gênero aos funcionários, o que foi aceito pela empresa. Apesar de o agressor não ter participado nem pedido desculpas, outros homens que também a tinham ofendido estavam ali para escutá-la. "Foi uma forma de resgatar o que era meu. Acho que surtiu efeito. Voltei a passar lá na frente e faço isso até hoje. Nunca mais ouvi uma palavra, mas também evito olhar para eles."
Cicatrizes
O episódio, que tornou Natalha conhecida no país inteiro, após o acordo feito na Justiça ser noticiado por diversos veículos, é só uma das várias batalhas enfrentadas pela mulher nascida na pequena Açailândia, no interior do Maranhão. As cicatrizes nas mãos, no colo e no punho são sinais de uma vida de luta, com muitos sonhos realizados, mas também vários reveses.
Um deles, que ainda machuca a ponto de Natalha não gostar de falar sobre, a tirou de sala de aula. Formada em licenciatura em matemática pela Universidade Estadual de Goiás, ela sempre quis ser professora, o que fez até 2013, ano em que decidiu deixar a sala de aula. "Naquela época, estava uma loucura, com opiniões muito contrárias", limita-se a dizer.
Mais um recomeço. Trabalhou como copeira, doméstica e atendente de lanchonete, até que voltou à escola, desta vez, como educadora social voluntária em um colégio na Estrutural, onde mora. Ali, ouve os alunos, acolhe suas angústias e ajuda na inserção dos que se sentem excluídos, como uma aluna autista, que merece grande parte de sua atenção. "Eu percebo que estou contribuindo para a construção de cidadãos fortes", fala sorrindo, sentada na sala da pequena casa em que mora com o cachorro Mailo, cercada de livros de matemática e português.
Motivo de orgulho
A atuação como educadora social também a ajuda a se preparar para um retorno à sala de aula, um lugar, segundo ela, "impressionante". "Estou engatinhando para voltar hoje", anuncia, com a paciência e o respeito ao próprio tempo que aprendeu a cultivar. Afinal, Natalha sabe que as conquistas até aqui não foram poucas.
Na pequena Açailândia, chegar à universidade era algo "muito distante". Para uma pessoa trans, parecia impossível. "Eu sou a única transgênero, negra, favelada, licenciada em matemática da América Latina de que se tem notícia. Isso é para mostrar o tamanho da desigualdade. Muitas meninas queriam ter a oportunidade que eu tive e infelizmente não tiveram", aponta.
Outra oportunidade que Natalha abraça com todas as forças é a própria vida. Dados da União Nacional LGBT apontam que o tempo médio de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos. "Ser uma pessoa transgênero e chegar aos 36 anos de idade é um orgulho. Eu tenho apreço pela vida. Esse é o bem mais precioso que eu tenho."
Especial
Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/ historiasdeconsciencia .