A capital do Brasil poderia ser conhecida pela cidade dos contrastes. A pobreza, às vezes, mora bem perto das regiões ricas. Na 601 Norte, próximo ao Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), um grupo de moradores enfrenta o desafio de depender de materiais recicláveis e doações para sobreviver. Em barracas de madeira e lona, famílias inteiras se abrigam.
Isabela mora há dois anos no assentamento próximo ao Iate Clube, mas vem para a 601 Norte, pois o local é mais fácil de conseguir as doações de alimentos e roupas. "Aqui a gente precisa muito de calçado, roupa, comida. Também de cobertor, porque choveu e molhou o que a gente tinha e não dá para secar, então, está bem difícil. Material escolar também é bom. Tudo que a pessoa puder doar, já ajuda", avalia.
Durante o tempo que a equipe de reportagem se juntou aos moradores para conversar, a família conseguiu um único pequi para colocar no arroz. "Ao menos vai dar um gosto", garantiu a mulher. O sonho de Isabela é ser contemplada com uma casa do governo. "No ano que vem, eu queria ter uma casa ou, quem sabe, ter condições de pagar um aluguel. Tirar meus filhos dessa vida. Não quero que eles vivam aqui não. Uma casinha ao menos. Tanta gente ganha muito sem nem precisar. E a gente aqui. Tento há anos uma moradia. Nunca fui contemplada", afirma.
Para alimentar o fogão a lenha, o marido de Isabela, Francimar dos Santos, 35, trouxe pedaços de madeira. "Trabalho com recicláveis, que dá para ajudar a juntar um pouco de dinheiro. Mas tenho fé de que Deus vai tirar a gente dessa. O Deus que a gente crê é um Deus vivo", acrescenta.
Religiosidade
Quem também partilhava o almoço era Ana Maria Paiva, 43. Devota, usava brincos de Nossa Senhora Aparecida. "Se a gente não se apega com Deus, não sobra nada. É Ela que vai proteger a gente com o manto sagrado", ressalta. Ana diz que os planos para 2022 é conseguir doações para melhorar de vida com os netos.
"Estamos precisando muito de um carrinho de bebê usado, o que temos aqui está amarrado com cordinha. O bebê tem 2 meses de vida e, além dele, tenho quatro netos. Eu só queria dar uma condição melhor para eles. Tenho um barraquinho de madeira descendo lá para baixo, agora estou tentando reunir doações de janela, porta, vaso, qualquer coisa assim, já serve. No ano que vem, eu quero deixar ele arrumado", salienta.
Apesar das dificuldades, o grupo não deixou de lado o espírito de Natal e se reuniu para decorar uma pequena árvore à beira da via da Asa Norte. Eles reforçam: "Não podemos ser gananciosos". Pela manhã, um carro parou e deixou uma sacola de roupas para os moradores. Não houve briga entre eles. "Aqui é assim, se cabe em mim, fica comigo, se é uma roupa que cabe nela fica com ela. Tudo é dividido. Da mesma forma, se a gente sabe que caberia em uma amiga, a gente vai lá e leva", garante Ana.
Auxílio
Questionada sobre as ações realizadas para mitigar esse tipo de problema social, a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) disse que, por meio do Serviço Especializado de Abordagem Social (Seas), os bolsões de concentração de população em situação de rua do DF são acompanhados. "As equipes fazem a abordagem, na qual apresentam os serviços, programas e projetos. Pelos dados de outubro, 2.328 pessoas se autodeclaram em situação de rua no DF. O Seas é um serviço que atende pessoas em situação de rua nos espaços públicos do DF e realiza ações para identificar situações de risco social", detalha.
Segundo a pasta, atualmente há 28 equipes de abordagem social. "O contato de acolhimento pode ser acionado pelo telefone 3773-7606. É importante destacar, porém, que a Sedes não retira compulsoriamente pessoas em situação de rua. O trabalho visa ao convencimento por meio da apresentação dos serviços da Política de Assistência Social. Em 2020, o GDF lançou o Programa Prato Cheio que concede o valor, por seis meses, de R$ 250 para aquisição de produtos alimentícios.
Atualmente, são 38 mil beneficiários. Outro aporte financeiro que o GDF lançou recentemente para a população mais vulnerável da capital federal é o Cartão Gás, no valor de R$100, que atende 70 mil famílias. Além disso, os 14 Restaurantes Comunitários da cidades fornecem alimentação, de segunda a sábado, das 11h às 14h, ao custo de R$1. As pessoas em situação de rua podem retirar suas refeições de forma gratuita", informa.
Humildade
Na avenida próximo à Universidade de Brasília (UnB), Cristina*, 21, vive com os dois filhos de 4 anos e 4 meses. A pandemia bagunçou os planos da jovem que tinha voltado a estudar no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) em 2020. "A gente aqui precisa das coisinhas de criança, fralda, essas coisas. Mas também de produtos de higiene", informa. A moradora, apesar dos desafios, garante: "No ano que vem vou voltar a estudar, terminar o EJA e talvez conseguir algo melhor. Estou esperando ser sorteada nos programas de casa própria do governo".
Maria de Fátima Ribeiro, 34, mora em um barraquinho de madeira no assentamento de Santa Luzia, mas teve o botijão de gás roubado e, atualmente, passa os dias com o neto no barraco de lona próximo a Casa do Estudante da UnB. "Queria conseguir ganhar um botijão de gás para ter meu fogão, isso era o que mais precisava nesse momento. Porque as pessoas levaram o que eu tinha e agora não ficou nada. Mas roupa e alimento também a gente precisa. Na verdade, tudo que a gente ganha é bem-vindo. Aqui mesmo é bem difícil conseguir água, porque nem todo mundo que a gente pede nos recebe", lamenta.
Apesar dos desafios, Maria pontua: "Para o próximo ano não tem muito o que pedir além de muita saúde. Nada de luxo, nem que a gente esteja sentado em um meio fio, mas se tiver todo mundo feliz, é o que importa", finaliza.
*Nome fictício a pedido da entrevistada