08 de fevereiro de 2021 | 05h00
Roberto Menescal costuma dizer que Nara Leão era a cantora “mais inteligente” do Brasil. O compositor fala com propriedade, afinal, ambos vitorienses radicados desde cedo no Rio de Janeiro, conheceram-se ainda na infância, tiveram aulas de violão com o mesmo professor e foram amigos e companheiros de trabalho de uma vida toda.
É justamente essa inteligência a que Menescal se refere – não está restrita ao intelecto, mas também à capacidade de Nara se mover dentro da música brasileira de maneira particularmente racional – que o jornalista Tom Cardoso destrincha no recém-lançado perfil Ninguém Pode com Nara Leão – Uma Biografia.
Cardoso parte da (já batida) rixa entre Elis Regina (1945-1982) e Nara (1942-1989) para mostrar como a segunda estava longe de ser purista e sempre antenada no que estava por vir. Elis, que, desde 1965, ganhara um programa de televisão, O Fino da Bossa, após se consagrar como vencedora do I Festival de Música Brasileira com Arrastão, viu a audiência do seu musical semanal cair pelas tabelas com o avanço da Jovem Guarda, comandada por Roberto Carlos e sua turma.
Elis, então, ao lado de Edu Lobo, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e o futuro tropicalista Gilberto Gil, saiu pelas ruas do centro de São Paulo em uma passeata de prestígio à música brasileira que entrou para a história como a Passeata Contra a Guitarra Elétrica, em 1965. Nara achou tudo um horror. O ocorrido alimentou a troca de farpas entre as duas por meio da imprensa.
Anos antes, Nara, chamada de musa da bossa nova, deu as costas para a turma que ensaiava no apartamento de seus pais, o advogado Jairo Leão e a professora Tinoca, de frente ao mar de Copacabana, e surpreendeu a todos ao gravar em seu disco de estreia, Nara, de 1964, sambas de Zé Kéti, Carlota e canções engajadas de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes.
A versão consagrada é a de que Nara rompeu com a bossa ao terminar seu namoro, em 1961, com o produtor e letrista Ronaldo Bôscoli, um dos líderes do movimento e responsável por torná-lo comercial, após ser traída. Cardoso, discorda.
“Não podemos reduzi-la a isso. Ruy (Castro, autor de livros como Chega de Saudade e A Onda Que Se Ergueu no Mar) é meio que dono da história da bossa, mas acho que ele contou a versão do ponto de vista do Bôscoli. Não foi uma desilusão amorosa que moveu a Nara. Sem fazer muito barulho, de maneira muito natural, ela era totalmente de vanguarda. Quando todo mundo esperava que ela gravasse os sucessos da bossa em seu primeiro disco, Nara, que àquela altura já estava envolvida com o pessoal do CPC (Centro Popular de Cultura) e do Cinema Novo, foi buscar os compositores do morro”, diz.
Cardoso também esmiúça o entrevero que Nara teve com o Exército, em 1966, dois anos após o Golpe de 1964. Em uma entrevista ao jornal Diário de Notícias, Nara defendeu a extinção do exército e disse que o Brasil tinha outras prioridades como construir escolas e hospitais. Também afirmou que os militares podiam entender de canhão, mas não sabiam nada de política.
Os militares não gostaram nada do que leram. O pai de Nara foi convocado para das explicações à sede do Ministério da Guerra. Jairo Leão não abaixou a cabeça. Disse que a filha era maior de idade e livre para dizer o que pensava.
Mais tarde, quando a AI-5 aumentou a perseguição aos opositores da ditadura, Nara, já casada com o cineasta Cacá Diegues, mudou-se para Paris, no fim de 1969, depois de dar por encerrada a carreira de cantora. Lá, na vida cotidiana, com a primeira filha, Isabel, nos braços, faz as pazes com a bossa nova e grava uma verdadeira antologia do gênero, Dez Anos Depois, com 24 canções, a maioria de Tom Jobim.
A vida e carreira de Nara já foram temas de outras duas biografias. A primeira escrita pelo jornalista (e amigo da cantora) Sérgio Cabral, Nara Leão – Uma Biografia, foi lançada em 2000. Outra, de 2008, pelas mãos do também jornalista Cássio Cavalcante, com o título de Nara Leão: A Musa dos Trópicos, tem quase 700 páginas.
O leitor mais atento perceberá que há diferentes relatos para um momento importante da vida da cantora. Os primeiros sintomas da doença que matou a cantora – um tumor no cérebro – apareceram em 1979. Quase seis anos depois do primeiro diagnóstico, participado pelo médico ao pai de Nara, a cantora ainda não sabia – ou preferiu não tomar conhecimento – da doença que lhe causava tonturas e lapsos de memória.
Após consulta e exames nos Estados Unidos, Nara pediu a Miguel Bacelar, seu empresário, que lhe contasse qual era a doença que tinha. De acordo com o narrado por Cabral, a conversa se deu dentro de um táxi. No texto de Cardoso, a revelação foi feita a Nara na sala de seu apartamento, no bairro do Leme.
Como Nara, uma mulher que sempre teve as rédeas da vida bem firmes em suas mãos, por opção ou excesso de proteção, ficou alheia a tudo, impedida até de tomar decisões de onde ou com quem se tratar? Cardoso opina: “É uma história delicada. O pai sempre foi muito centralizador. Nara, apesar dos sintomas, continuava a produzir, fazer shows e discos. Penso que, da parte dela, também teve aquela história de empurrar com a barriga. Foi tudo muito estranho. Ela tinha consciência de que as pessoas ao seu redor sabiam, mas não queria falar da doença”, comenta.
Além de detalhes da doença que matou Nara em 7 de junho de 1989, aos 47 anos, Cardoso, que optou por privilegiar fatos ligados à carreira da cantora, avança em outros dois acontecimentos da vida íntima de Nara. Um deles é o suicídio de Jairo, pai da artista, no apartamento que morava, em 1981 – algo que Cabral não detalhou.
Da vida amorosa, traz à tona o envolvimento de Nara com o poeta Ferreira Gullar (1930-2016), em 1965. A cantora, segundo consta no livro, chegou a pedir que o escritor, à época, casado com a produtora Tereza Aragão, a acompanhasse por uma viagem que pretendia fazer pelo interior do Brasil. O romance não evoluiu, mas a amizade permaneceu.
Em tempos de música digital, no qual informações e fichas técnicas dos álbuns são raras, Ninguém Pode com Nara Leão peca por não trazer em seus anexos a discografia atualizada da cantora – muitos de seus discos ganharam faixas extras quando foram reeditados em CDs há vinte anos. Também há coletâneas importantes que chegaram ao mercado com raridades e um box que trouxe três apresentações ao vivo de Nara.