11 de julho de 2020 | 05h00
Tom Jobim morreu há 25 anos, mas na memória de Nana Caymmi, de 79 anos, os papos matinais com o maestro pelas ruas e bares do bairro carioca do Leblon ainda estão vivos. Pássaros, árvores, mágoas e alegrias da vida e, claro, o compositor preferido deles, o conterrâneo Heitor Villa-Lobos (1887-1959), eram os assuntos mais recorrentes. Vez ou outra, dividiam uma dose do destilado Steinhaeger. Por isso, o álbum Nana Tom Vinicius, que o Selo Sesc acaba de lançar nas plataformas digitais, vem carregado de emoção e reverência ao compositor e a seu parceiro mais constante.
Com direção musical e arranjos do irmão, Dori, o álbum traz 12 composições – algumas assinadas só por Tom, outras só por Vinicius e, também, as que têm a parceria dos dois, como os clássicos Eu Sei Que Vou Te Amar, lançada como single do projeto, e Se Todos Fossem Iguais a Você. As duas últimas foram sugestões de Dori. “Fiz questão delas, pois são mais badaladas e muito gravadas. Mas quem poderia fazê-las como Tom e Vinicius as conceberam era Nana”, diz o compositor, que também tocou violão nas faixas. “Ele é o arranjador, queria fazer o trabalho dele, pôr o que ele gosta também”, diz Nana, bem-humorada.
Nana Tom Vinicius teve suas bases gravadas no Rio de Janeiro no primeiro semestre do ano passado. Além de Dori, Itamar Assiere (piano), Jorge Helder (baixo), Jurim Moreira (bateria) e Bre Rosário (percussão). Depois, músicos de São Paulo, entre eles Teco Cardoso e Nahor Gomes, gravaram instrumentos de sopros. Por fim, de sua casa em Petrópolis, onde mora desde que deixou Los Angeles, depois de 27 anos, Dori escreveu à mão – ele se recusa a usar computadores – os arranjos de cordas que foram gravados pela Orquestra de São Petersburgo, na Rússia.
Por causa de todo esse processo, Nana conta que fez algo pouco habitual em seus trabalhos: fez questão de regravar as vozes depois que a base foi coberta pela orquestra – sob protestos de todos os envolvidos na produção –, que já davam o trabalho da cantora como perfeito. “Há muitos anos eu não canto com orquestra. É um custo grande que as gravadoras não querem pagar. Então, fiz questão de gravar a voz pela segunda vez. Para segurar a emoção de cantar tudo novamente, colocava um pouco de uísque no café. Fazia um irish coffee logo cedo”, conta Nana, que afirma gostar de trabalhar pela manhã. “‘Boemia, aqui me tens de regresso’ no estúdio, não é comigo. Acordo cedo e vou gravar.”
Essa emoção de Nana também está intimamente ligada a uma história de família. Tom e Dorival Caymmi, pai dela e de Dori, eram amigos próximos e confidentes. Em 1964, eles juntaram a família no disco Caymmi Visita Tom. Nele, Nana, aos 23 anos, cantou acompanhada por Tom ao piano. Tempos que, inevitavelmente, voltaram à lembrança durante as gravações. “Eu passo por cada barra, que eu mesmo invento. Se não for assim, eu não seria Nana e você não estaria me ligando para me entrevistar”, diz a cantora, aos risos.
Para reforçar o elo entre Caymmis e Tons, a capa do álbum foi confiada a Elaine Jobim, mulher do músico Paulo Jobim, filho mais velho de Tom. Ela, que já havia assinado o projeto gráfico dos livros Cancioneiro Tom Jobim e Cancioneiro Vinicius de Moraes. A imagem traz manuscritos de anotações musicais de Tom e das letras de Vinicius que estão no repertório. “O Dori não queria ilustração ou desenhos abstratos. Queria a obra deles. Tom escrevia notas de uma maneira bonita. A letra do Vinicius é marcante”, lembra Elaine. Ela conta que finaliza o encarte do álbum físico, com 32 páginas, ainda sem data para ser lançado.
Volta aos palcos adiada. Os últimos shows de Nana foram apresentados em 2015, no palco do Sesc São Paulo, entidade que normalmente a trazia para temporadas anuais. Com o projeto do disco, uma encomenda do diretor regional do Sesc Danilo Miranda, a ideia era a de que, após o lançamento, Nana voltasse aos palcos – provavelmente acompanhada por orquestra, segundo o desejo de Dori. Seria o momento exato, por causa dos 25 anos de morte de Tom e os 40 de Vinicius neste 2020. Mas, com a pandemia, tudo foi adiado.
Porém, Nana confessa que esse hiato dos palcos tem uma razão muito mais forte do que as últimas declarações que ela mesma deu de que queria diminuir o ritmo de shows: há quatro anos, ela, depois de uma anemia e cansaços persistentes, descobriu que estava com câncer no estômago. Duas tromboses – uma na perna e outra perto do pulmão – indicaram a necessidade de uma cirurgia urgente. “Foi uma porrada violenta, mas estou recuperada. Agora, estou fazendo só o que quero. Assumi a música Casa no Campo, sabe? Estou aqui (em Pequeri) com meus discos, livros e nada mais. Vamos ver, depois da epidemia, como as coisas se encaminham. Há um sentimento de luto no Brasil. Não vejo por que sair cantando como uma louca por aí”, diz Nana que, no ano passado, lançou um tributo ao cantor Tito Madi, que, até o momento, também não foi apresentado nos palcos.
Em seu refúgio, Nana passa os dias lendo sobre a história do Brasil, bordando, tricotando e cuidando das plantas. Para ouvir, ela escolhe os chorinhos de Villa-Lobos, canções do maestro e poeta francês Léo Ferré, óperas na voz da soprano italiana Renata Tebaldi e o disco que fez com as canções de Tito Madi. De séries, prefere as tramas policiais. “Adoro história com justiça, investigação. Assisto a tudo e descubro antes de todo mundo quem matou, quem não matou.”
Enquanto espera o mundo voltar ao normal, Nana anota em seu caderno – ela se diz avessa à tecnologia – os desejos de outros álbuns dedicados a compositores brasileiros: Ary Barroso (músicas como Por Causa Desta Cabocla e Risque, ela diz), Caetano Veloso, Gonzaguinha, Dori e Edu Lobo são alguns da lista. “Se eu pudesse, passava a vida gravando tudo o que tenho vontade.” Por enquanto, ela segue isolada. “Temos de cortar as ambições. O mundo está correndo muito, não sei para onde. Mas a Terra é redonda, você sempre volta ao ponto de início”, acrescenta.