Na camisa com que Martinho da Vila aparece para a entrevista estão versos de um de seus maiores sucessos: “Canta, canta, minha gente! (...) A vida vai melhorar”. Aos 84 anos, completados ontem, ele insiste na esperança. O álbum que vai lançar em março, “Mistura homogênea”, tem letras otimistas, como as de “Era de Aquarius”, duo com o rapper Djonga, e “Unidos e misturados”, com Teresa Cristina, ambas já nas plataformas. Também participam Zeca Pagodinho, Xande de Pilares, todos os filhos e a escritora moçambicana Paulina Chiziane, última vencedora do Prêmio Camões.
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Nesta entrevista por vídeo, Martinho tempera com risadas mesmo temas como o machismo na música e as ligações perigosas das escolas de samba. Mas fica sério ao falar de racismo e Jair Bolsonaro. Enredo da sua Unidos de Vila Isabel, ele diz que só deveria voltar a haver desfiles em 2023.
A música “Era de Aquarius” tem uma visão muito otimista do futuro do país. O Brasil justifica essa esperança?
Está difícil. Mas você não pode perder a esperança. Se perder a esperança, perdeu tudo. Muita gente fala “otimista” como se fosse uma palavra depreciativa. Os otimistas é que mudaram o mundo. Aquele que vai para o jogo pensando “o nosso time não vai ganhar”, aí é que não ganha mesmo.
Temos tido muitos exemplos de racismo, como o assassinato do congolês Moïse Kabagambe. Você tem esperança em ver o Brasil menos racista?
O racismo é uma doença terrível, mas, segundo o Nelson Mandela, é uma doença curável. Ninguém nasce racista. Aprende a ser racista. E, se aprende a ser, pode aprender a amar o próximo. O racismo está forte. E agora, com a internet, as pessoas podem fazer agressões e ficar escondidas. Então, os racistas botaram as asinhas de fora.
Você vê alguma relação entre esses fatos e as posições do governo federal?
Tem a ver. O presidente não dá bons exemplos. Ele dá maus exemplos. E a função do chefe é dar exemplos. Eles não vêm debaixo, vêm de cima. Quem toca as coisas é o chefe da família, o chefe da nação.
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Em agosto de 2021, no “Roda Viva”, você chamou Sérgio Camargo de “preto de alma branca” e disse que “a Fundação Palmares não existe”.
Eu gostaria de me encontrar com ele por acaso. A melhor arma é a conquista. Se eu te faço uma coisa ruim e você reage com força, dá margem para eu reagir com força também. Na verdade, tem de dizer: “Calma aí!” É preciso tentar conquistar o sujeito: “Você é tão maneiro!” Quando falei que ele era preto de alma branca, não era o que eu queria dizer. A expressão saiu rapidamente. Eu queria dizer que ele é branco. Age como branco, atua como branco. Por ele, voltava o cativeiro, voltava tudo. Ele se esquece de que, se voltasse o cativeiro, ele estava lá.
Você está entre os artistas que já têm candidato a presidente?
Vou votar no Lula, com certeza.
E vai fazer campanha?
Se ele me pedir, eu faço, porque ele é meu amigo. Para os amigos eu faço tudo. Para os inimigos, nada.
Seus discos são sempre conceituais. Qual é o conceito de “Mistura homogênea”?
É misturar as culturas, os ritmos, as religiões. Quando faço um disco, tenho um conceito, mas, antes de tudo, faço um disco para mim. Tenho que ouvir o disco e gostar. Quando consigo isso, muita gente gosta da mesma maneira.
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Houve um lado bom em ficar recluso durante esse tempo todo da pandemia?
Sempre tem um lado bom em tudo. Como eu fiquei muito parado, não fiquei parado. Confinado, mas trabalhando. Eu ainda não tinha escrito um livro de contos. Tinha, mas estava com poucos contos, muito magrinho. Eu engordei, ficou legal. O título é “Contos sensuais e algo mais”. Notei que tinha muitos contos que falam de relacionamentos, muita sensualidade nas histórias. O “algo mais” são outros assuntos. E estou fazendo livros infantojuvenis para uma série chamada “Martinho conta”. Já contei as vidas de Cartola e Noel Rosa. Ainda vai ter Paulinho da Viola, Dona Ivone Lara e mais gente.
Você já se candidatou à Academia Brasileira de Letras e não teve votos. Pretende tentar de novo?
Eu gostaria de ir para a ABL porque todo escritor gostaria, mesmo os que dizem que não. O Ferreira Gullar dizia que era uma porcaria e acabou indo. Eu gostaria de estar lá porque faço parte de um segmento do movimento negro que diz que nós temos que ocupar os lugares. Fui incentivado a me candidatar. Mas não é um projeto de vida. Já fiz a minha parte.
“Na escola de samba, você participa ou não. Eu, que sempre estive à frente, que sou presidente de honra da Vila, lidei com os corretores zoológicos (bicheiros), com o pessoal do morro, do movimento (tráfico de drogas)”
O fato de Chico Buarque dizer que não cantaria mais “Com açúcar, com afeto” gerou uma polêmica sobre cancelamento de músicas. Você ainda cantaria “Você não passa de uma mulher”?
Cantei essa música só quando lancei o disco (em 1975). Foi grande sucesso, tema de novela. Eu não queria cantar, mas as pessoas pediam. Vou explicar o que aconteceu. Há músicas que eu faço e fico insatisfeito com uma palavra. Estava procurando uma frase para a letra, mas o (produtor) Rildo Hora já tinha feito as bases (do arranjo). Ele falou: “Grava assim mesmo e, quando achar a palavra, vem no estúdio e troca.” Aí eu gravei cantando “você não passa de uma mulher”. Todo mundo achou maravilhoso, a gravadora gostou e eu me ferrei. As mulheres não gostaram. Depois, não cantei mais. Para o escritor, o letrista, o poeta, as palavras podem ter outro sentido. Para mim, era como se a mulher fosse o máximo: dali não passa. Mas foi entendido de outra forma.
“Disritmia” sofre críticas por causa do refrão “Vem logo, vem curar seu nego/ que chegou de porre lá da boemia”?
Há quem não goste. Algumas gostam, outras não.
Você concorda com o adiamento do carnaval para abril?
Na minha opinião, deveria adiar para o ano que vem. Abril já é daqui a pouco. Está ruim a situação. Esse vírus me persegue. Ele me atacou uma vez e, além disso, fica não querendo que eu seja homenageado pela Vila Isabel. Ia ser no ano passado, passou para este ano, agora para abril, ainda está arriscado a passar para o outro ano. Mas ele vai perder para mim.
Muita gente depende do carnaval para trabalhar.
Pois é, tem um grupo de trabalhadores que vive em função do carnaval. A Vila Isabel tem um grupo que é permanente. Quando termina o desfile, vai para o barracão, desmonta os carros para reaproveitar coisas. Esse pessoal está sofrendo muito. Precisa do carnaval.
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Há duas semanas, Bernardo Bello, ex-presidente da Vila, foi preso sob suspeita de ter mandado assassinar o bicheiro Alcebíades Paes Garcia, o Bid. Em dezembro, você publicou um post chamando o bicheiro Capitão Guimarães de “amigo”. Não é possível evitar isso no mundo das escolas de samba?
Na escola de samba, você participa ou não. Eu, que sempre estive à frente, que sou presidente de honra da Vila, lidei com os corretores zoológicos (bicheiros), com o pessoal do morro, do movimento (tráfico de drogas). Eles (os homens envolvidos com o tráfico) saem na bateria, tem que negociar com eles. Houve um período em que eu falei: “Pessoal, vocês podiam fazer o seguinte: não deixar assaltar na porta da escola, não mexer nos carros.” “Deixa comigo, Martinho da Vila!” Na escola de samba desfila todo mundo, junto e misturado. Na mesma ala tem empregada, patroa, polícia, chefão... Para quem está na escola, não tem jeito.
O que significa a morte de Elza Soares?
Elza foi uma das maiores cantoras do Brasil, senão a maior. Senti muito. Conheci antes de ser famosa. Ela era da Água Santa e eu morava na Boca do Mato. Ela é um símbolo importante, era bem consciente. Teve uma vida confusa que dá um grande filme. Muita gente criticou a Elza por causa da história com o Garrincha, mas ela ajudou muito o Garrincha. Foi uma figura incrível.
Você se sente com 84 anos?
Nunca pensei em chegar a 84. Quando eu era jovem, a faixa etária de velho era 60 anos. Hoje, 60 é guri. Eu, com 84, não sinto grande diferença. Tem umas coisas que não funcionam tão bem como antigamente. Mas tenho boa saúde, boa resistência. Desfilo na Avenida toda, faço show de uma, duas horas.