Dona Ruth de Souza, dama da teledramaturgia, do teatro e do cinema brasileiros, morreu numa manhã de domingo em que mulheres negras, suas herdeiras,marchavam sob o sol de Copacabana contra o racismo, por direitos. Estava internada com pneumonia havia uma semana, no Hospital Copa D’Or, no mesmo bairro. Partiu aos 98 anos, reconhecida e reverenciada por seus pares. Foi uma grande atriz. Foi uma grande atriz brasileira. Foi uma grande atriz negra brasileira. Foi uma grande atriz negra e ativista contra o preconceito racial no Brasil.
Filha de um agricultor e de uma lavadeira, nascida em 12 de maio de 1921 no Engenho de Dentro, subúrbio carioca, desbravou territórios até então inimagináveis para uma artista negra. Apaixonou-se pelo cinema ainda menina; foi atrás do sonho. Nos anos 1940, integrou-se ao Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento (1914-2011), ator, dramaturgo, escritor, artista plástico, ativista e político. Em 1945, tornou-se a primeira atriz negra a se apresentar no palco do Teatro Municipal, que frequentava desde muito jovem com ingressos que ganhava das patroas da mãe. Lá, onde participou da encenação de “O Imperador Jones”, do americano Eugene O’Neill, será velada nesta segunda-feira, das 10h às 16h. O sepultamento será no Cemitério São João Batista, Zona Sul do Rio.
‘Abriu todas as portas’
Pioneira é a palavra que melhor define Ruth de Souza. Como lembrou a atriz Taís Araújo em post numa rede social, ela veio antes de Chica Xavier, Léa Garcia e Zezé Motta: “Ela abriu todas as portas, ela escancarou essas portas”. Em 1947, foi premiada como atriz revelação na montagem de “O Filho Pródigo”, de Lúcio Cardoso (1912-1968). Estreou no cinema um ano depois. Na década de 1950, bolsista da Fundação Rockefeller, passou temporada nos Estados Unidos, onde estudou e pesquisou artes cênicas na American National Theater and Academy, na Karamu House e na Universidade de Harvard.
Participou de produções dos três principais estúdios brasileiros: Atlântida, Maristela Filmes e Vera Cruz. Com Sabina, personagem de “Sinhá Moça” (1953), foi a primeira brasileira indicada ao Leão de Ouro do Festival de Veneza. Disputou com Katherine Hepburn e Michele Morgan; perdeu para Lili Palmer. Atuou em radionovelas e nos teleteatros de Tupi e Record. Na TV Globo, foi a primeira negra a protagonizar uma novela, “A cabana do Pai Tomás” (1969).
Por duas vezes, em 1961, no teatro, e em 1983, numa minissérie, encarnou a escritora Carolina Maria de Jesus , autora de “Quarto de despejo – Diário de uma favelada”. Fez mais de 40 novelas, 33 filmes, dezenas de peças. Nunca deixou de denunciar a falta de oportunidades para artistas negros, confinados a papéis de escravizados, subalternizados ou coadjuvantes. No último carnaval, foi enredo da Acadêmicos de Santa Cruz, escola da Série A. Atravessou a Marquês de Sapucaí altiva e animada, sob a chuva.
Exerceu o ofício por mais de 70 anos. Nunca deixou de atuar. Participou este ano da série “Se eu fechar os olhos agora” , adaptação do romance de Edney Silvestre para a TV. Há duas semanas, esteve no set de “Tentáculos”, série com produção de Lui Mendes e direção de José Frazão, como lembrou Zezé Motta em post de despedida no Instagram.
O segredo do sorriso
A comoção pela morte da atriz inundou as redes. Artistas de gerações tão diferentes quanto Milton Gonçalves e Ícaro Silva; o cineasta Joel Zito Araújo e Lázaro Ramos; Flávio Bauraqui, Juliana Alves, Françoise Forton, Fabio Assunção lamentaram a partida.
Ruth de Souza tinha como marca o sorriso terno, franco, constante. De tão frequente, intrigava. O segredo eu descobri no privilégio de um tête-à-tête, em 2017, num encontro organizado pela então vereadora Marielle Franco em homenagem à atriz e à escritora Conceição Evaristo, na Câmara dos Vereadores do Rio. Ao posar para a enésima foto, olhar brilhante, dentes reluzentes, ela me segredou: “Alface. Eu digo alface e o sorriso aparece”. Nas seis letras de uma hortaliça trivial, o truque de uma atriz imensa, agora ancestralizada.
Dona Ruth de Souza não teve filhos biológicos. Mas deixou órfãs gerações de artistas brasileiros que hão de manter vivos seu legado, sua memória.