Manuel Bandeira
Ferro de engomar – o “aplicativo” de serviço de Dona Socorro
Socorro. Socorro era o nome dela. Socorro não sei-do-que. Isso, neste momento não é tão importante.
Lembro bem, que era Socorro.
Lembro também, que Socorro ficara viúva fazia algum tempo. Do casamento, tivera quatro filhos. Dois rapazes e duas moças – que, agora, cabia à ela fazer alguma coisa para garantir o sustento de todos. Era, como dizem os modernos, pai e mãe ao mesmo tempo.
Negra, cabelo liso e escorrido, com as ancas curvadas que a natureza lhe premiara – sem a modelagem das atuais academias de ginástica – garantia o desenho humano “de uma mulher e tanto”.
Aliás, “tanto quanto”!
Cera de carnaúba, usada para fazer o ferro “deslizar”
Dona Socorro não era amiga do rei de Pasárgada. Com certeza o Rei sequer a conhecia ou receberia alguma vez – a não ser que, por motivo especial Ela fosse ao Castelo para entregar alguma roupa especial de Sua Majestade.
Mas, se nunca foi à Pasárgada, hoje provavelmente Dona Socorro está no melhor dos céus. O céu que ela, em vida, fez por merecer.
Senão, vejamos. Viúva, mãe de quatro filhos menores para criar. Sem emprego formal (desses que os patrões assinam as carteiras profissionais e entram para amontoar os números do IBGE).
Como alimentar os quatro filhos?
Pela manhã, antes mesmo que o galo do vizinho cantasse, Dona Socorro já estava de pé. Tinha que levantar para preparar o café com nada para as crianças e fazer refresco de limão e embrulhar um pedaço de pão para cada um levar para “merendar” na escola.
Depois disso, não parava mais. Tinha que puxar água na cacimba para encher um tanque e lavar roupa. A roupa de casa (dela e dos filhos) e a roupa “da patroa”, de onde tirava a garantia do sustento.
Especializada em lavar (e passar, ou, como fala o cearense, “engomar”) roupa branca. O marido da patroa era médico e raramente usava outro tom de roupa que não fosse o branco. Lavar bem lavada – ainda não existia a água sanitária, nem o Omo lavava tão branco – e colocar no anil.
Era essa a rotina de Dona Socorro, de segunda à sexta-feira. Aos sábados, as tarefas domésticas ficavam a cargo das meninas, enquanto os meninos tinham a obrigação de encerar o assoalho de tacos de madeira.
Se os sábados eram diferentes para os filhos, desde a hora de acordar até o hábito de ver na televisão preto-e-branco instalada no chafariz público, onde a grade repetia por vezes as séries “O gordo e o magro”, para Dona Socorro tudo parecia rotina.
Cedo do dia claro, o ferro de engomar era colocado na janela, onde o vento soprava mais forte e não havia tanta necessidade de usar o abano de palha para “atiçar” o fogo do ferro. Mão limpas. Muito limpas, para não “manchar” a roupa branca da patroa.
Terminada a tarefa de engomar aquela pilha de peças brancas, a preparação para a entrega. O banho ao lado do tanque. A troca da própria roupa e, às vezes, até duas trouxas de roupas brancas eram preparadas para a entrega.
O ônibus. Muitas vezes lotado na ida, e mais lotado na volta.
A volta, entretanto, era triunfal.
Em vez de ir para Pasárgada, onde não existia Rei e ninguém era amigo de ninguém, o dinheiro do pagamento daquele trabalho da semana inteira, era “depositado com toda segurança” dentro do sutiã.
Dona Socorro “pronta” para entregar a roupa branca da patroa
Na chegada em casa, tudo limpo. Chão encerado com Parquetina, o que garantia aos meninos o direito de, depois de fazer todos os deveres de casa, e da escola, jogar bola domingo pela manhã no campinho de várzea.
E assim era a vida. Moradia em Pasárgada, ainda que ninguém fosse amigo do Rei. Na noite de domingo, a preparação para recomeçar tudo na madrugada da segunda-feira.
Assim, Dona Socorro “formou” os quatro filhos, vivendo em Pasárgada, mas, sem ser amiga do Rei.