Julio Maria, O Estado de S.Paulo
27 Dezembro 2018 | 21h21
Miúcha vai fazer falta. Ela não resistiu ao câncer no pulmão e teve uma parada respiratória, partindo nesta quinta, 27, aos 81 anos, no Rio. O velório e enterro estão previstos para esta sexta, no Cemitério São João Batista.
Antes da cantora, era a mulher. Mesmo como um ídolo distante, um totem inatingível, o baiano João Gilberto já fazia parte das partículas de seu oxigênio no dia em que ganhou uma bolsa de estudos e se mudou para Paris. A vida dividia-se então entre estudar História da Arte na Sorbonne de dia e seguir para as ruas noturnas de St Germain em busca de jazz e música brasileira. Em uma dessas noites, conheceu João Gilberto, apresentados por Violeta Parra, e tudo se deu rápido. Casados, seguiram para Nova York e tiveram a única menininha de uma união que duraria de 1965 a 1971: Bebel Gilberto. Em um raro dia, uma jornalista brasileira os visitou na residência da pequena Weehawken, em New Jersey, e, ali, a importância de Miúcha na vida de João Gilberto ficou escancarada.
A entrevista, por algum motivo que só os fantasmas de João podem explicar, era um tormento desde o início. Talvez pela soberba verbal da entrevistadora, Marilena Muller, talvez por uma já desenvolvida alergia aguda a entrevistas em geral, João se fechou e passou a olhar para o infinito diante das câmeras. Não se soltava nem diante de perguntas primárias. Quando parecia não conseguir mais dar sequência, chamou Heloísa, a própria Miúcha, para salvá-lo dos leões. Ela sentou-se a seu lado, sem muito mais do que ele a dizer a não ser abrir o sorriso e mostrar a pequena Bebel para as câmeras pela primeira vez. Deu certo, e Marilena Muller desistiu.
A primeira vez de Miúcha diante de um microfone foi um susto. Com o pai professor Sérgio Buarque de Holanda, que atendia a um convite para lecionar na Universidade de Roma, e mais os seis irmãos, dentre eles Chico Buarque, foi pequena para Roma viver uma época da qual se lembraria com carinho. As emissoras de rádio traziam para casa as novidades que apareciam no Festival de San Remo e o pai reservava momentos para interpretar em casa canções napolitanas cheias de exagero. Vinicius chegava às noites com histórias da vida de embaixador em Paris e o violão passava pelas mãos de quem sabia tocar.
Mas foi em uma daquelas noites que a família saiu para jantar no restaurante Osteria del’Orso que tudo aconteceu. Vinicius esperava os amigos no andar de cima da casa com um pianista que sabia tudo de seu repertório. Assim que a garotinha chegou a seu lado, ele ameaçou cantar algo, mas passou o microfone para a garota. E ela cantou, emocionada, e não se esqueceu mais daquela noite.
Seu primeiro álbum viria mais tarde, em 1976, já separada de João Gilberto (de quem nunca se afastaria) e morando no Brasil. The Best of Two Worlds era um projeto mais de Stan Getz e João Gilberto, unindo mais uma vez os mundos de um bossa-novista, João, e um jazzista, Getz. A ficha técnica menciona ainda a percussão de Airto Moreira, o piano de Albert Dailey e os arranjos e o violão de Oscar Castro-Neves.
A voz de Miúcha (creditada corretamente como Heloísa Buarque de Hollanda) entrava sobretudo nos temas cantados em inglês e trazia um brilho inquestionável, contrapondo ao suingue de volume linear de João e ao sax reverencial de Getz. Os críticos da publicação Allmusic saíram logo em elogios. “No geral, esse é um álbum tão bom quanto o de Getz, entre seus melhores trabalhos, e sem dúvida iguala suas colaborações anteriores com Jobim e Gilberto.” E isso, vale lembrar, já era 1976, muito tempo depois dos anos de glória da bossa nova, em meados dos anos 1960.
A mulher Miúcha vai fazer falta a João Gilberto. Era ela o fiel da balança sobretudo em tempos de turbulência familiar, a escudeira de todas as tempestades, a voz mais sensata, um farol que parecia guiar personagens de uma história nem sempre regida pelo bom senso. Era Miúcha também quem tinha o tom perfeito para matar no peito e com as palavras certas a ansiedade dos jornalistas e de quem quer que procurasse João ao mesmo tempo em que fazia de tudo para preservá-lo. Atendia aos telefonemas elegantemente, oferecia algum alpiste aos questionamentos e se despedia com lealdade sem fornecer mais informações que colocassem em risco a preservação psicológica do cantor do qual estava separada havia mais de três décadas.
A gravação que fica em sua voz, por todos os 14 discos que lançou, é Pela Luz dos Olhos Teus, composta por Vinicius de Moraes e gravada em parceria com Jobim no disco de 1977. Miúcha viu vozes chegarem em outros tons, passarem por ela como tratores, serem endeusadas, receberem honrarias, faturarem prêmios em festivais e se tornarem divas. Viu cantoras sendo carregadas em tronos, ganhando carros de gravadoras, sendo procuradas pelos melhores compositores. Muitas se aproximaram com intenções diversas do irmão Chico, do pai Sérgio e do amor de sempre João, que, até o fim, só confiava em sua palavra. Mas poucas deixaram, além de interpretações fortes, uma dignidade tão impactante quanto a que Miúcha deixa transparecer quando canta como se fosse qualquer um de nós: “Quando a luz dos olhos meus / E a luz dos olhos teus / Resolvem se encontrar / Ai, que bom que isso é, meu Deus / Que frio que me dá / O encontro desse olhar / Mas se a luz dos olhos teus / Resiste aos olhos meus / Só pra me provocar / Meu amor, juro por Deus / Me sinto incendiar”.