Esta quarta-feira, Milton Nascimento, o carioca mais mineiro da MPB, completa 80 anos — ainda em atividade, correndo o Brasil e o mundo com a sua turnê despedida dos palcos, “A última sessão de música” (que ele encerra no próximo dia 13, no Mineirão, em Belo Horizonte).
O GLOBO aproveita a data festiva para oferecer ao leitor/ouvinte um pequeno guia da obra fonográfica do cantor: um apanhado de oito discos essenciais, que vão do seu primeiro LP, de 1967, a “Pietá” (2002), CD em que ele ajudou a revelar o talento da cantora Maria Rita — filha de sua grande amiga (e incentivadora) Elis Regina.
“Milton Nascimento” (1967). Grande acontecimento num ano de grandes acontecimentos para a música brasileira, o primeiro LP do cantor provocou assombro ao unir samba, bossa e música interiorana brasileira ao erudito, o folk e o pop internacionais — tudo isso, com a costura das melodias e de uma voz sem igual. Estão lá “Travessia” (segundo lugar no Festival Internacional da Canção daquele ano), a “Canção do sal” (gravada por Elis Regina), a instrumental “Catavento” e a camerística “Maria minha fé” com acompanhamento luxuoso do Tamba 4 (um dos maiores grupos do samba-jazz) e as orquestrações desnorteantes de Luís Eça e Eumir Deodato. Milton se lançava no cenário com a poesia dos jovens parceiros Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Fernando Brant — e com a sua própria, contundente e emocionante em “Morro velho”.
“Milton” (1970). Depois de uma experiência nos Estados Unidos (que resultaram no LP “Courage”), o cantor estreitou no Brasil a sua relação com o rock, ao lado do grupo
Som Imaginário (de Tavito, Zé Rodrix, Fredera, Luiz Alves e Robertinho Silva), e gravou um disco surpreendente em vários aspectos. Primeiro, pela sonoridade, que combina guitarras e pianos elétricos, a percussão
ambient de
Naná Vasconcellos e as novas técnicas de gravação numa espécie de progressivo muito brasileiro. Depois, pela parceria de Milton com o ainda adolescente irmão de Márcio Borges,
Lô Borges, que reforçou a influência beatle em “Para Lennon e McCartney”, “Clube da Esquina” e “Alunar”. Disco que ainda soa atual 52 anos depois, ela ainda abre espaço para que o cantor resplandeça sozinho, ao violão, numa recriação de “A felicidade”, clássico de Tom e Vinicius.
“Clube da Esquina” (1972).
Eleito este ano o melhor disco brasileiro de todos os tempos, pelo podcast Discoteca Básica, o LP duplo que reuniu Milton Nascimento, Lô Borges e a nata da nova música mineira (e brasileira) da época pode ter demorado a fazer o sucesso que merecia — mas, ao longo do tempo, sedimentou sua influência sobre as gerações subsequentes de compositores, intérpretes e arranjadores. Fosse por suas irretocáveis canções (”Tudo o que você podia ser”, “Cais”, “O trem azul”, “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Nada será como antes”, “Cravo e canela”, “San Vicente”...), pelo clima de sonho criado por sua sonoridade aberta, pela atmosfera de liberdade que exalava se suas faixas, “Clube da Esquina” iniciou um novo capítulo na vida de Milton Nascimento e praticamente fundou um gênero musical.
“Milagre dos peixes” (1973). A liberdade exercitada no “Clube da Esquina” acabou esbarrando, inevitavelmente, na Censura do regime ditatorial militar, responsável pelo veto a muitas das letras daquele que seria o seu álbum seguinte do artista. A arbitrariedade inspirou um disco experimental, em que vocalizações e instrumentais tentam passar o clima sufocante que os criadores foram impedidos de traduzir em palavras. A percussão cinematográfica de Naná Vasconcellos foi fundamental para esse disco em que Milton pôs especial força nos arranjos orquestrais e evidenciou a raiz negra de sua música em uma participação especial de Clementina de Jesus (em “Escravos de Jó”). Quando as palavras são permitidas, na faixa-título, ela cortam: “eles não falam do mar e dos peixes / nem deixam ver a moça, pura canção / nem ver nascer a flor, nem ver nascer o Sol”.
“Geraes” (1976). Consolidado no cenário da música popular brasileira, o cantor se permitiu um pouco mais abertura nesse bem-sucedido LP, que é conhecido por suas incursões na latinidade em “Volver a los 17” (com a cantora argentina Mercedes Sosa), “Caldeira” e “Promessas do sol” (ambas com o grupo folclórico chileno Agua). Mas esse é também o disco das parcerias com Chico Buarque (cantadas em dueto) “O que será (à flor da pele)”, “Primeiro de maio” e “Cio da terra”. E ainda do Milton intérprete fabuloso, em “Calix bento”, obra recolhida do folclore mineiro pelo guitarrista Tavinho Moura. Disco com acentuado gosto de interior, “Geraes” tem lá os seus desvios, como o que ele faz no samba mais urbano em “Circo Marimbondo” (parceria com Ronaldo Bastos), em gravação na qual divide os vocais com Clementina de Jesus.
“Caçador de mim “(1981). Nova década, nova gravadora, novo produtor, novos sons. Sob a orientação do mago dos estúdios Mazolla, Milton Nascimento buscou as rádios como nunca antes em seu discos para a Ariola. E algumas vezes chegou lá — como nesse LP, com as faixas “Caçador de mim” (de Sérgio Magrão e Luís Carlos Sá) e “Nos bailes da vida”, parceria sua com Fernando Brant que marcou a colaboração com o grupo Roupa Nova (discípulo do Clube da Esquina, surgido da cena carioca de bailes para o sucesso radiofônico). É um disco que traz boas baladas paras FMs, com os característicos timbres de piano (”Amor amigo”, “Vida”), ao lado de experimentos com o grupo mineiro Uakti (caso de “De magia, de dança e de pés”). Mesmo que mais comercialmente orientado, os discos de Milton são sempre incomuns.
“Nascimento” (1997). Dos anos 1990, este talvez seja o disco que melhor represente o Milton que concilia passado em futuro. Produzido pelo americano Russ Titelman, ele traz o cantor com uma voz clara a potente (depois de boatos sobre sua saúde, afetada pela diabetes) e a sonoridade cheia da época, em um repertório em boa parte autoral — ora um pouco mais percussivo (como em “Louva-Deus” e “Janelas para o mundo”, parcerias com Fernando Brant), ora mais melódico, na boa “Rouxinol” (essa, só sua). Com uma banda que une veteranos como o baterista Robertinho Silva e novatos como o baixista Alberto Continentino (e surpresas, como a versão de “Cuerpo y alma”, do cultuado cantor e compositor uruguaio Eduardo Mateo), “Nascimento” acabou valendo a Milton Nascimento o Grammy de disco de world music em 1998.
“Pietá” (2002). Trinta anos depois, eis uma reconexão com o espírito coletivo e aventureiro do “Clube da Esquina”: Milton se juntou às jovens cantoras Marina Machado, Simone Guimarães e Maria Rita (sim, a filha de Elis, ainda antes do seu primeiro CD) para fazer um disco cheio de canções novas, olhando para a frente. A sua voz encontra campo fértil na percussiva e eletrônica “Boa noite”, nos rocks “Casa aberta” e “Vozes o vento”, na densa como “Tristesse” (em dueto com Maria Rita) e nas jazzy “Imagem e semelhança”, “A lágrima e o rio” e “Meninos de Araçuaí”. Para um artista veterano, “Pietá” conseguiu até um feito, que foi produzir um hit radiofonico, a meio folk “Quem sabe isso quer dizer amor”. Mas o disco tem ainda a papa fina de “Cantaloupe island” (tema de
Herbie Hancock, com o próprio pianista, mais o guitarrista Pat Metheny e Milton nos vocalises).