Ainda pairam dúvidas sobre sua real data de nascimento, mas para efeito simbólico, em 20 de maio comemora-se o aniversário da bailarina e coreógrafa Mercedes Baptista. Considerada uma das precursoras do balé e da dança afro no Brasil, ela completaria 100 anos em 2021.
Embora Mercedes tenha feito história ao se tornar a primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio Janeiro em 1948, suas maiores contribuições para a cultura brasileira se concretizaram fora dele. Ela foi responsável por consolidar a identidade da dança afrobrasileira e divulgá-la mundo afora; abriu portas e ofereceu oportunidades para inúmeros artistas negros, incluindo Elza Soares, no seu próprio Balé Folclórico; foi uma das mentes por trás da revolução estética que transformou o carnaval carioca nos anos 60; e foi uma personagem fundamental na luta antirracista empreendida no país, através da valorização da arte e da cultura negra brasileiras.
Mercedes morreu poucos anos antes de celebrar seu centenário, em 19 de agosto de 2014, aos 93 anos. Em 2016, dois anos após sua morte, uma estátua em sua homenagem foi erguida no Largo São Francisco da Prainha, na zona portuária do Rio de Janeiro.
Nascida em Campos dos Goytacazes, na região norte do estado, Mercedes se mudou ainda jovem para a capital com a mãe, a costureira e empregada doméstica Maria Ignácia da Silva. As duas se estabeleceram no Grajaú, onde Mercedes começa a trabalhar em casas de família. Mas é quando consegue um emprego como bilheteira em uma sala de cinema e entra em contato com os filmes da era de ouro de Hollywood que surge o sonho de ser famosa, relembra o professor e pesquisador Paulo Melgaço, autor da biografia “Mercedes Baptista: a criação da identidade negra da dança”.
— O que ela trazia nos depoimentos é que teve uma infância e uma mocidade muito feliz. Quando chegou no Rio de Janeiro, ela decidiu que seria famosa, só não sabia como — conta Melgaço.
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Com esse objetivo em mente, Mercedes lê um anúncio no jornal que diz que uma casa no centro do Rio estava precisando de dançarinas, veste sua melhor roupa e vai fazer o teste. Chegando lá, descobre que, na verdade, buscavam garotas para fazer programa.
— Foi uma grande decepção para ela. Mas aí, passeando pelas ruas do centro, ela descobre o Serviço Nacional do Teatro e se inscreve no curso de balé clássico dirigido por Eros Volúsia. Começa a ter aulas com essa professora, que é considerada a criadora da dança moderna brasileira. Aí descobre que quer ser bailarina, que quer dançar — narra o biógrafo. Ele conta que já no primeiro espetáculo que estrelou, Mercedes chamou atenção do público, mas acabou sendo escanteada pela professora, o que posteriormente ela atribuiu ao racismo.
Em artigo em que remonta a história da dança afrobrasileira, a pesquisadora Marianna Monteiro aponta que ao analisar fotos da época, nota-se a ausência de bailarinas negras ao lado de Eros Volúsia, mesmo quando a coreografia apresentada incorporava características afro. "Talvez isso possa ser considerado um sinal de que, embora o interesse pela cultura de origem africana fosse crescente nos círculos culturais mais elitizados, um espaço real para a atuação do bailarino negro ainda não se efetivara", escreve a autora. E é precisamente esse espaço que Mercedes decide criar alguns anos depois.
Consciência racial
Antes disso, insatisfeita em ser deixada de lado por Eros Volúsia, decide migrar para a Escola de Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, se tornando aluna de Yuco Lindberg. Já no Municipal, dois momentos transformam por completo a vida de Mercedes. O primeiro é o encontro com Abdias do Nascimento, que em 1944 havia criado o Teatro Experimental do Negro.
— Um dos objetivos de Abdias na luta antirracista era trabalhar a autoestima das pessoas negras. Ele promovia um concurso da mais bela mulata e, em 1947, chama Mercedes para participar. Ela concorre e ganha. A partir daí se aproxima de Abdias e da atriz Ruth de Souza e passa a entender melhor as questões raciais — conta Melgaço.
O biógrafo relata que, no ano seguinte, em 1948, Mercedes se percebe pela primeira vez em uma situação de racismo ao competir e conquistar uma vaga permanente no corpo de baile do Municipal.
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— Houve um concurso interno para os alunos da escola do Municipal ingressarem no corpo de baile. Mercedes se inscreveu, passou na primeira e na segunda prova, mas não foi avisada da terceira. Quando chega na escola, suas colegas estão fazendo o teste. Foi uma tentativa de boicote. Mas ela acaba fazendo a prova junto com os rapazes e é aprovada, se tornando a primeira negra a entrar no corpo de baile — relembra.
Mas o fato de compor o grupo não amenizou o racismo e a discriminação sofrida: apesar da representatividade, Mercedes não teve papéis de destaque nos espetáculos.
— Ninguém dizia que ela não dançava porque era negra, era porque não tinha técnica. Mas toda a turma que entrou com ela era escalada, e ela não — diz o pesquisador.
Em 1951, a coreógrafa Katherine Dunham, considerada a matriarca da dança negra norte-americana, vem ao Brasil para apresentações no Rio e em São Paulo e convida Mercedes para estudar dança moderna em sua companhia nos Estados Unidos. A bailarina aceita o convite, com alguma dificuldade consegue autorização para se licenciar do Municipal, e viaja para Nova York onde passa cerca de um ano.
Inspirada pela experiência nos EUA, no seu retorno ao Brasil, em 1953, funda o seu próprio grupo, o Ballet Folclórico Mercedes Baptista. Decidida a formular uma proposta de dança ligada à cultura afrobrasileira, começa a investigar a dança produzida dos terreiros brasileiros, frequentando a casa do amigo e pai de santo Joãozinho da Goméia, na Baixada Fluminense.
Mercedes era uma professora rígida, exigente ao extremo, e atuava “à moda antiga”, conta Melgaço. Sua instituição se voltou para a formação de bailarinos negros, abrindo portas para inúmeros artistas, mesmo aqueles que não tinham condições de pagar as aulas.
A excelência do grupo foi reconhecida e Mercedes, combinando a formação clássica com a dança popular, excursionou o Brasil afora e levou seus espetáculos para o exterior. Seu balé teve papel fundamental na disseminação e valorização da cultura afro no país e no mundo, transformando a bailarina num ícone do ativismo negro e antirracista.
A partir dos anos 70, ela também passou a dedicar-se ao ensino como professora na Escola de Dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ministrando a disciplina “Dança Afro-Brasileira” e levando workshops de dança para diversos lugares no Brasil e no mundo.
Xica da Silva e a revolução no Carnaval
Durante a década de 1960, Mercedes compõe uma pioneira e vitoriosa parceria com os carnavalescos Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, na escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. O desfile mais icônico foi o de 1963, quando Mercedes montou e coreografou a comissão de frente do desfile, cujo enredo foi responsável por contar e consolidar na cultura popular a história de Xica da Silva. O grupo de bailarinos liderados por Mercedes dançou o minueto e garantiu a vitória à escola.
— Mercedes foi fundamental para o período chamado de revolução salgueirense. O desfile de 1963 marca essa transformação. Ela traz a questão teatral para a avenida, com o minueto. E até então, os enredos não traziam uma história tão amarrada, do começo ao fim. Isso começou a se desenhar ali — conta o pesquisador Leonardo Antan, autor do livro "Laroyê Xica da Silva", que mistura ficção e relatos históricos para remontar a história do icônico desfile.
— Houve muitas críticas na época. Foi um escândalo. Fomos considerados pela crítica os idealizadores de uma coreografia maldita para o carnaval carioca. Mas, dois anos depois, começaram nos copiar — afirmou o professor Manoel Dionísio, da Escola de Mestre-sala, Porta-Bandeira e Porta-Estandarte, que participou do desfile histórico.