26 de junho de 2020 | 05h00
O pequeno Kemuel Temóteo da Silva, de 10 anos de idade, comoveu muitos músicos com um vídeo publicado na conta de uma rede social de Israel, seu irmão mais velho, de 14 anos. A gravação mostra o menino com seu contrabaixo, com um belo sistema de captação de som, um braço bem construído, tarraxas consistentes e cordas tinindo. O menino na gravação explica o funcionamento do instrumento, mostra a caixa elétrica contida no interior do aparelho, os botões que modulam os graves e agudos. Um detalhe nesse instrumento, porém, o diferencia de todos os outros: ele é todo de papelão, construído a partir da imaginação do menino.
O garoto produziu seu baixo de papelão como um verdadeiro luthier. “Tive a ideia e fui juntando papelão vários meses. O corpo, eu fiz primeiro, depois fiz o braço. Colei os dois do jeito que se fabrica”, referindo-se ao modo como os instrumentos reais são produzidos. Com o decorrer dos meses, percebeu que, se colasse alguns peças de Lego atrás do braço de seu baixo, este ficaria melhor para “tocar”. “Eu gosto do som grave, é um som muito bonito, e o mais importante nele é essa parte aqui ó, dentro dele, a caixa elétrica, os captadores”, diz, com propriedade, o menino. A gravação do vídeo foi feita em agosto de 2019, mas sua história continua reverberando pelas redes digitais.
Kemuel mora com a família desde o ano passado em Barreiro, uma cidade portuguesa pertencente ao distrito de Setubal. Seu pai, Roséliton Temóteo da Silva, de 39 anos, trabalhava duro para o sustento da família em diversas atividades, em Cachoeiro do Itapemirim. Motorista particular e polidor de mármore e granito eram algumas das suas ocupações. “Morávamos em um dos bairros mais pobres e violentos de Cachoeiro, o Zumbi”, recorda-se a mãe do garoto, Priscila Temóteo da Silva, de 34 anos.
A entrevista foi feita via um aplicativo de conversas online e contou com a presença dos pais e do irmão de Kemuel. Priscila está grávida de seis meses do terceiro filho, que já tem nome, Emanuel. Os nomes, todos bíblicos, têm uma razão de ser: a família é evangélica. Roséliton era pastor da Assembleia de Deus no Brasil. Nos cultos, arriscava tocar algumas notas no contrabaixo. “Minha família tem toda uma relação com a música e todo mundo tem um ouvido apurado”, diz o pai. O que pode explicar essa paixão do menino para o instrumento de quatro cordas. O irmão mais velho, Israel, toca bateria.
O vídeo, publicado em agosto de 2019 no YouTube, acabou compartilhado por diversos canais de música em várias plataformas de redes sociais, como o “Coisa de músico” e “Baixista Sincero”, e gerou um movimento espontâneo para doação de um instrumento “de verdade” para o garoto. A família recebeu mensagens de muitas partes do mundo, pessoas dispostas a ajudar de alguma maneira. “Vieram mensagens da França, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, Argentina, Itália. Era um tal de colocar no Google tradutor pra ver o que o povo estava escrevendo”, lembra o pai. “Muita gente, muitas lojas, entraram em contato conosco para doarem um baixo para o Kemuel, mas, quando ficavam sabendo que estávamos em Portugal, tudo ficava mais complicado.” Um músico amador – que prefere não se identificar –, residente em Portugal e chef de cozinha, levou o instrumento até a família.
O músico recebeu o vídeo através de um grupo de WhatsApp de baixistas brasileiros, o “Baixo Rio”. “Apesar do nome, têm baixistas do Brasil inteiro nesse grupo. Um dos meus amigos me mandou uma mensagem dizendo que o Kemuel morava aqui em Portugal. Fui atrás e consegui o contato com a família”, conta.
As contas de Instagram “Baixista sincero” e “Coisa de Músico” promoveram vaquinhas para comprar um amplificador para o menino, além de cordas novas para o baixo. O dinheiro ajudou em outros itens além dos musicais. “O tênis que ele tinha era o único e estava rasgado”, conta o pai, que usou parte do valor para um calçado novo.
A família vive com dificuldades. O pai trabalhou alguns meses na construção civil, e depois se estabilizou trabalhando como empregado em uma empresa de jardinagem. A mãe trabalha como faxineira em um ginásio que, em Portugal, significa academia de ginástica. Nesse período de isolamento, todas as intempéries inerentes aos imigrantes se intensificaram para a família, mas o casal não se arrepende de ter deixado o Brasil. “Pensava na questão da segurança. Morei, um pouco antes de vir para cá, em Vila Velha, no Espírito Santo. Violento demais. No Brasil, o filho da gente vai para escola e a gente não sabe se ele volta”, diz.
Além do baixo e da vaquinha, uma escola de música de Registro, no interior de São Paulo, entrou em contato na semana passada com Roséliton oferecendo um curso gratuito via online para Kemuel – sinal de que o vídeo não para de repercutir. O professor, Fernando Nogueira, músico há vinte anos e com formação erudita, é enfático: “Fiquei bem impressionado. Ele tem ritmo, um ouvido apurado. O Kemuel é um menino musical”.