RIO — Aos 80 anos, Martinho da Vila expõe em “Bandeira da fé” (Sony) aquilo que tem passado por seus olhos, mente e coração de sambisa-cronista-filósofo. O disco está sendo lançado hoje e será apresentado em show no Teatro Municipal no dia 3. Pelas 12 faixas, a maioria delas inéditas, passam a delícia da preguiça e a nobreza do trabalho. Passa também a força da mulher, a ida de brasileiros em massa para Portugal, a Barra da Tijuca, onde mora, o Brasil atual, coisas da vida e da morte.
— Tudo é assunto pra samba — sintetiza Martinho. — Inicialmente o assunto do samba era vida no morro. O barraco, o trabalho, a mulher, a falta disso ou daquilo... Hoje mudou. Mas sempre teve e sempre tem por baixo um cunho social, um fio da coletividade. Porque a música diverte, mas tem função de fazer pensar. Como canto em "Rei dos carnavais"(canção que abre o disco e na qual ele fala do samba na primeira pessoa) : "Meu gosto é penetrar nos ouvidos/ Balançar os corpos/ Atingir os sentidos".
'Depois eu não sei'
Tendo a simplicidade como valor máximo, Martinho balança os corpos e atinge os sentidos em canções como "Depois eu não sei", resgatada do álbum "Sentimentos", de 1981. Na música, em 12 versos, ele traça uma autobiografia desde o ventre ("nadando na bolsa d'água") até a morte que virá, concluindo na sentença exposta em seu título: "Depois eu não sei".
“Tudo é assunto pra samba. Inicialmente o assunto do samba era vida no morro. Hoje mudou. Mas sempre teve e sempre tem por baixo um cunho social, um fio da coletividade. Porque a música diverte, mas tem função de fazer pensar.”
— Não penso muito na morte não. Mas ela volta e meia vem, né? Porque ela é certa. Mas não penso no depois. Fiz uma música com Candeia, "Eterna paz", que resume o que eu acredito ("Como é bom adormecer/ Com a consciência tranquila/ As chuteiras penduradas/ Depois do dever cumprido/ Despertar num mundo livre/ E despoluído/ Onde tudo é só amor") . Não tem porque ter medo da morte. O que é certo não tenho que temer. Só não quero ficar doente muito tempo. Quero morrer sem dar trabalho, na boa — diz Martinho. — Nas culturas africanas, se festeja a morte de alguém que teve vivência, uma participação na coletividade. Quanto mais velho, maior o komba (cerimônia com comida, bebida, música e dança em memória do morto) .
"Bandeira da fé", o disco (com capa de Elifas Andreato), nasceu de uma sugestão da gravadora, que pediu que Martinho pensasse num álbum. Ele já tinha decidido que não faria mais discos ("Ninguém ouve, o ideal é gravar uma ou duas e pôr na web, essas coisas de hoje"). Mas cedeu e foi a seu baú garimpar. Encontrou, por exemplo, a ideia não desenvolvida para o enredo da Vila Isabel de 2016, "Memórias do Pai Arraia" (homenagem a Miguel Arraes), que virou "Baixou na Avenida" e foi gravada agora. A própria "Bandeira da fé" era uma que havia sido gravada apenas por Agepê e agora ganhou a interpretação de seu autor — assim como "A tal brisa da manhã", lançada por seu parceiro Luiz Carlos da Vila.