A cabeça de Marisa Orth parece um caldeirão fervilhante, de onde transbordam ideias e reflexões sobre os mais variados aspectos da vida a todo instante. Não é de se estranhar, portanto, que, aos 56 anos, a atriz considere o cérebro o “nosso órgão mais sexual”. Em meio a uma quarentena cumprida em sua casa, em São Paulo, ela vive uma imersão criativa, enquanto prepara a sua volta para um humorístico na TV aberta. Ela está no elenco da nova temporada do “Zorra”, que estreia no próximo sábado, com boa parte das esquetes gravadas pelos atores em seus próprios lares. “Até meu cachorro botei na roda”, conta.
O GLOBO: Como recebeu o convite para o “Zorra”?
Fiquei bem feliz. Nem tinha percebido que estava com saudade de fazer comédia. O “Zorra” me lembra o “TV Pirata”, que fiz o finalzinho. Tem essa coisa de interpretar cinco, seis personagens totalmente diferentes no mesmo dia. Acho leve, porque o principal é a situação, a piada. Num mesmo programa se faz uma mãe futurista e uma professora descontrolada.
E como a pandemia afetou o projeto?
Gravamos umas três semanas, e aí, casa. Ficamos esperando, até que decidimos fazer remotamente. Até meu cachorro eu botei na roda. A vizinha aqui do lado também queria aparecer. “Deixa eu pegar um papel de vizinha fofoqueira”, disse. Imagina que louco o redator receber essas informações e bolar uma comédia em cima? A Maria, minha querida e deliciosa cozinheira, que está quarentenando comigo porque dorme aqui em casa, virou produtora de objetos. Meu filho (João Antonio, de 21 anos, do relacionamento com o produtor Evandro Pereira), está cursando o último ano da faculdade de Cinema e acaba fazendo “estágio”. Ele ilumina, sonoriza, enquadra. Já fez até ponta como ator. O maridão (o percussionista Dalua) dá uma força também. Ele pegou mais na parte pesada, que é carregar as coisas de um cenário para o outro.
Você sempre está envolvida com um projeto no Teatro. Como ficou essa agenda?
(Suspira) Nem fala, cara. A sorte é que fiz muito teatro no ano passado. Este ano, eu queria fazer uma peça de texto, como não fazia há tempos. Comecei a fazer umas coisas, um Tennessee Williams (dramaturgo americano morto em 1983), que também nunca fiz, grandes projetos, com um tesão, e aí aconteceu isso. Quero crer que a gente vai para a rua. O teatro não morre. Basta um caixote, e a gente sobe em cima. A cidade acalmou. Criaram-se espaços, tem menos carros. Acho que estamos nos apoderando mais do ambiente urbano, e isso é um puta caminho civilizatório.
Mas você está conseguindo tocar algum projeto?
A gente não perde a esperança, amigo. Estamos vendo se conseguimos dinheiro para essa peça do Tennessee Williams. Tem o meu show “Romance”, mistura de teatro e música, que quero fazer em drive-in. Já tem um começo de conversa sobre isso. Estou muito a fim de entrar nessa. Acho que comédia é fundamental hoje em dia, bicho. Faz rir e critica, né?
Está mais difícil fazer humor?
Talvez exija mais coragem. O humor é provocativo para caramba. Mas a minha geração sofreu mais preconceito. Muitas vezes, fui vista por pares como: “Ah, ela pegou o caminho mais fácil, faz qualquer coisa para ganhar dinheiro”. Era menos valorizado, especialmente para a mulher. Ela tem que ser dama do teatro, né? Muito provavelmente não criticaram Paulo Gracindo, com seu “Primo rico, primo pobre”, Procópio Ferreira, Grande Otelo, Brandão Filho... Não estou me igualando a esses monstros geniais, mas a cobrança para a mulher é maior.
Como foi reencontrar a Magda em meio a uma onda feminista para o “sai de baixo — O filme” (2019)?
A Magda é uma puta crítica à mulher submissa. Quantas delas existem? E outra coisa engraçada: eu sou a criticada. As pessoas perguntam: “Você tem coragem de fazer a Magda?”. Ninguém critica o Caco. É como se eu produzisse o “cala boca”. Olha que loucura! Essa frase nunca foi do script, foi um bordão que ele (Miguel Falabella) inventou porque é típico de um homem como o personagem tratar a mulher assim. Quantos bandidos de terno você conhece no Brasil, com a mulher do lado que fala: “Jura que ele roubava?”. Acho que Caco e Magda ainda são superpertinentes no nosso país, infelizmente.
Nas suas últimas postagens no Instagram, havia guru e padre. Como você se relaciona com a fé?
Fui criada por duas pessoas extremamente cultas, que me deixaram livre para escolher a minha religião. Gosto do budismo, porque é filosófico e trabalha menos com o medo, com essa ideia de que o diabo pode te pegar, tão propagada por algumas religiões. E postei o padre Lancellotti porque adoro ver, finalmente, um integrante da Igreja Católica falando que recebe homossexuais e transexuais, que Deus pensa assim. Acredito nisso. Sou extremamente partidária da criação de um grande fórum espiritual, com representantes de todas as religiões reunidos pela paz. Porque não está dando mais para fazer guerra em nome de Deus. Fico muito triste quando vejo uma religião, qualquer que seja, aliada à violência. Isso para mim é totalmente excludente e triste.
Você mudou muito nos últimos anos?
Morrer e ficar velha não dá para escapar. Estou menos competitiva. Acho isso uma coisa bem profunda. Sempre fui bastante competitiva. Não extremamente agressiva, mas sofria se não tivesse alcançado alguns objetivos. Não percebia que tinha ganhado de um outro lado. Isso é saber viver. Uma coisa é querer. Outra coisa é ter noção do que é bom para você. Acho que estou começando a me conhecer melhor.
Sua “Playboy”, publicada em 1997, fez muito sucesso...
Fui para Portugal uma época e disse que fiz a “Playboy” porque tinha vontade. Aí as pessoas ficaram chocadas, perguntaram se eu precisava tanto assim de dinheiro. Mas eu nunca fui uma mendiga belíssima, uma mulher que estivesse na sarjeta e só tivesse a beleza para vender. Nunca fui nem mendiga nem belíssima. Não sou aquela: “Uau, como ela é linda. Vamos ver se é boa atriz”. Sei que não sou isso. Achava a “Playboy” chique. Só tinha estrelas na capa. Foi uma superoportunidade artística.
Sente uma cobrança externa para ser um “mulherão”?
Estou no lucro total. Consegui ficar linda. Foi um bônus. Deu para ser gata e gostosa, e agora acho que estou bonitona. Estou envelhecendo bem para caramba. Estou gostando bem mais de mim hoje em dia. E a “Playboy” ajudou nisso também.
Lidar com a sexualidade e a libido aos 56 anos tem sido revelador?
Vou falar sinceramente para você: mudou muito pouco essa parte na minha vida (risos). Continuo achando que o nosso órgão mais sexual é o cérebro, que as minhas curvas melhores são as circunvoluções do meu córtex. Mas confesso que essa pergunta é um pouco íntima demais para a gente botar num jornal.
Nos anos 1980 você já era bem inserida na cena artística, tinha as suas bandas musicais. Viveu, de alguma maneira, a “porra-louquice” dessa época?
Não acho que fomos tão porra-louca. Sempre paguei pau para a geração que veio antes. Ninguém foi tão maluco quanto nos anos 1970, quando era politicamente aceitável você se drogar. Os anos 1980 já acho meio yuppie, meio o sonho acabou. Já sou pós-sonho. Porém, estava com 20 anos quando acabou a ditadura no Brasil, marcando uma explosão muito legal, multimídia. Havia a teatralização da música e a musicalização do teatro, por exemplo. Tinha também uma mistura da comédia e da tragédia. Um movimento em todo o país, como o Asdrúbal Trouxe o Trombone, no Rio, a Cia. Baiana de Patifaria. Misturou tudo. Podia tudo. E isso é muito legal. Agora, estou vendo separar, bitolar tudo de novo. Os nichos estão se formando, porque quem vende estuda o público-alvo e faz aquele produto específico.
Tem achado o mundo mais careta? Que comportamentos fazem você pensar isso?
Careta é a palavra. Gosto do sertanejo feminino mas, quando ouço o masculino, falo: “Não acredito que ainda estão falando isso?”. Uma macheza e um jeito de namorar meio bobos. Adoro funk desde sempre, acho o ritmo fantástico, mas tem umas letras que, às vezes, acho careta. Também acho o feminicídio careta para caralho, esse medo que homem tem de mulher. Homofobia é de quinta. A gente ainda bater numa pessoa porque ela é gay, lésbica ou trans? E não desconfiar que talvez você tenha um pouco de tesão? Eu sou formada em Psicologia e, pelo amor de Deus, o mundo age como se não existisse Freud, como se não houvesse inconsciente. Coisa chata. Acho isso o auge da caretice.
Diante de todas essas reflexões, você é pessimista ou otimista em relação ao futuro?
Não tenho a menor dúvida de que o bem e a paz são mais fortes do que a guerra, de que o amor é mais forte do que o ódio. Nem que isso demore. O amor sabe esperar, a paz espera. Sabe aquele perdão da natureza? Você destrói um terreno por cem anos e, no momento em que você para de destruir, ela volta a ocupar aquilo. É tão bonito isso. Essa eterna simpatia da natureza de voltar. Quer metáfora maior para o perdão do que isso?