30 de setembro de 2020 | 05h00
MADRI — Mario Vargas Llosa vê a América Latina “resignada à democracia” e distante, salvo exceções de ditaduras que qualificou como “ideológicas”, da barbárie dos regimes ditatoriais de caráter militar.
Apesar das tentativas do Nobel de Literatura de 2010 de evitar comentários a respeito da política, a apresentação de seu romance mais recente a jornalistas em Madri, em outubro passado, serviu para isso. Porque Tempos Ásperos (lançado agora no Brasil, pelo selo Alfaguara) se inspira em um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos contra o presidente guatemalteco Jacobo Árbenz, episódio que, segundo Vargas Llosa, mudou o destino da região.
“Um país, exceto em casos excepcionais, não chega a essa situação em um dia”, disse o escritor peruano, aludindo à famosa questão de Conversa no Catedral: “Em que momento o Peru ficou assim?”. Ele destacou que a América Latina “viveu um longo processo em que perdeu oportunidades”, começando com uma independência “malfeita” em que a sede de poder frustrou o sonho libertador de Simón Bolívar e deu origem a ditaduras militares por toda parte.
“Felizmente, hoje em dia essa América Latina se resignou à democracia, ela entendeu que a democracia é o caminho para lutar efetivamente contra o subdesenvolvimento e o fracasso”, afirmou. “Já não existem ditaduras militares desse tipo, hoje temos outras ditaduras que são ideológicas, como Cuba ou a Venezuela. E temos, sobretudo, democracias muito imperfeitas, porque são muito corruptas, porque há muita demagogia e porque o populismo também causa estragos.”
Em seu novo romance, Vargas Llosa desvenda conflitos e conspirações que devastaram a política regional entre 1940 e 1959. O ano-chave é 1954, quando Washington, por meio de sua agência de inteligência, apoia o líder do golpe, coronel Carlos Castillo Armas, e derruba o governo democrático da Guatemala.
Obcecado pela Guerra Fria, o governo dos Estados Unidos havia acusado o presidente Jacobo Árbenz Guzmán de ser um fantoche soviético ao empreender uma reforma agrária contrária aos interesses de um grande conglomerado de frutas. O autor vê nesses acontecimentos a razão da virada de Fidel Castro para o comunismo: “Minha impressão é a de que, se os Estados Unidos tivessem apoiado as reformas em vez de derrubar Árbenz, provavelmente a história da América Latina teria sido outra”.
O autor de Pantaleão e as Visitadoras e A Festa do Bode disse que, como em muitas outras de suas obras, o germe de seu último romance foi uma história que ouviu durante um jantar e depois se dedicou a pesquisar, alimentando a imaginação para preencher “as lacunas”.
“Começo a investigar para mentir com conhecimento de causa, para poder criar ficção a partir de uma matéria real”, contou. “O romance e a história sempre tiveram relações muito próximas. Os fatos históricos são respeitados, mas, nos detalhes, a liberdade de um romancista é e deve ser total.”
Aos 84 anos e com mais de uma dezena de romances, peças de teatro e centenas de artigos de opinião e palestras, o premiado escritor disse que se sente mais inseguro em lidar com a máquina de escrever hoje do que quando começou.
“Não sei se é a pressão de não decepcionar seu público ou se enclausurar com seus fantasmas que fazem com que nunca se esteja seguro”, afirmou Vargas Llosa.
Mas escrever “é a hora do pânico, e também um momento extraordinário de satisfação, quando se descobre uma porta que abre a história em uma direção que não se suspeitava”. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
Autor: Mario Vargas Llosa
Trad.: Paulina Wacht e Ari Roitman
Ed.: Alfaguara (280 págs., R$ 59,90)