RIO — As doses de ficção que colocamos em nosso cotidiano nos mantém sãos, acredita a atriz Marieta Severo. E é por isso que a trama de "Noites de Alface", filme estrelado por ela e Everaldo Pontes e que chega aos cinemas no próximo dia 24, é tão necessária no Brasil atual, um país que passou a "asfixiar a imaginação":
— As pessoas precisam de ficção para viver, elas sucumbem sem ela. E esse filme tão delicado, tão poético, que coloca a necessidade absoluta da ficção na vida das pessoas, é importante pois chega no terreno de um Brasil absolutamente avesso e contrário a isso, onde todos os valores são de asfixiar a cultura, a imaginação e a poesia e enaltecer o oposto, que é a violência, o autoritarismo e o obscurantismo — afirmou a atriz em coletiva de imprensa realizada nesta quinta (17) para divulgação do longa.
O filme, escrito e dirigido por Zeca Ferreira, é uma adaptação do livro homônimo de Vanessa Bárbara. Na pacata ilha de Paquetá, o casal Ada (Marieta Severo) e Otto (Everaldo Pontes) vive há anos em uma rotina praticamente imutável. Recluso, ele passa a maior parte do dia entre espiadas na janela e a leitura de livros de suspense, enquanto tenta vencer a insônia com o chá de alface preparado pela mulher.
Porém, o sumiço repentino do carteiro local, Aidan (Pedro Monteiro) muda a rotina de Otto: na investigação para descobrir o que de fato aconteceu, ele encontra em sua imaginação e na ficção elementos para entender uma nova realidade pessoal e a que está à sua volta.
Neste caminho, Otto se depara com os outros excêntricos moradores desta Paquetá fictícia: Nico (João Pedro Zappa), o incoveniente farmacêutico, a excêntrica Dona Iolanda (Teuda Bara), Teresa (Inês Peixoto) e seus cachorros barulhentos, Mayu (Lumi Kim) e seu avô, o velho Taniguchi (Antônio Sakatsume), um japonês ex-combatente de guerra que sofre de Alzheimer e o carteiro principal da cidade, Aníbal (Romeu Evaristo).
— É um personagem de um homem comum, solitário mas apaixonante. Quando fui lendo o roteiro, me vi muito naquele universo: o da solidão, da velhice, do tempo. Aos 65 anos, no Brasil, a gente perde muito contato com esssas ficções da vida. E agora principalmente, enquanto formos governados por pseudo-fascistas, vamos perder ainda mais — conta Everaldo.
Já Ada, avalia Marieta, é a ponte do recluso Otto com o mundo ao seu redor: é ela quem leva ao marido as novidades e informações do que acontece no pequeno mundo onde existem.
Além de Marieta e Everaldo, o elenco é composto por membros do Grupo Galpão, do qual Zeca afirma ser "fã declarado":
— Os personagens de apoio, digamos assim, são tipos que existem a partir da lente do Otto, do que ele está passando. Então eu queria que esse elenco tivesse uma unidade sobre o que é esse tom. Aí, imediatamente pensei em um elenco que já tivesse esse entendimento, o que me levou para o Galpão, que sou devoto, estou sempre indo ver o grupo, desde que sou adolescente.
Este e o primeiro longa de Zeca, que já dirigiu diversos documentários premiados, como "Terreiro Grande" e "Áurea", este último exibido em mais de 60 festivais pelo mundo e que conquistou 25 prêmios em festivais. A escolha pela adaptação do livro veio naturalmente: "antes mesmo de terminar de ler, eu já queria fazer o roteiro", contou:
Apesar de trazer uma mensagem tão importante para o Brasil de agora, como diz Marieta, o longa foi rodado em 2018, muito antes da pandemia. O que só demonstra, segundo ela, a capacidade que a arte tem de antecipar fatos:
“A arte tem essa capacidade infinita de prever e de olhar para o passado com outras lentes", afirma.
Lançamento adiado em um ano
Com um "orçamento enxuto", o filme, conta Zeca, teve o lançamento adiado algumas vezes por conta do coronavírus. Colocar ele em cartaz 2021, segundo o diretor, é uma verdadeira vitória. Para ele, apesar de uma realidade de cortes de verbas públicas para as artes, esse é um dos melhores momentos da produção cinematográfica brasileira:
— Estamos lançando com um ano de atraso da ideia original, e vou sentir falta de não ser em um cinema, uma experiência coletiva, mas tem uma hora que o filme tem que ir para a rua. Eu li uma frase em um debate que concordo, e dizia: a gente tá vivendo o pior momento do melhor momento do cinema brasileiro. Nunca produzimos tanto e vimos tão pouco. Mas eu diria que a gente nunca produziu tão bem também, com um cinema vindo de periferia muito bom. Tem muita coisa boa sendo feita, apesar de tudo.