RIO - Era 13 de junho de 1984, em Lisboa. João Gilberto havia se apresentado na cidade três dias antes e ainda estava hospedado no Hotel Alfa. O telefone de seu quarto tocou. Era uma fã de 21 anos, moçambicana criada numa aldeia em Portugal (“Sou da roça”). Ela tinha visto o show e ficado fascinada. O músico ouviu a jovem e deteve sua atenção num ponto: “Como é seu nome? Maria do Céu? Vem aqui.”
— Aí eu fui e nunca mais saí — diz Maria do Céu Harris, que agora, 35 anos depois daquela ligação, pleiteia na Justiça o reconhecimento de uma união estável com João, um dos pontos-chave da disputa pelo espólio do músico.
Maria do Céu estava com João no momento de sua morte, na tarde de 6 de julho — nos últimos meses, vivia no apartamento do artista, no Leblon, Zona Sul do Rio. Ela alega ter sido sua companheira desde 1984, mas Bebel Gilberto, filha do músico, não a reconhece nesse lugar — ao contrário do irmão, João Marcelo. Maria do Céu está no testamento que João elaborou em 2003 (revogado em 2017), porém no mesmo documento o músico afirma que não tinha companheira. Além disso, em 2004 nasceu Luisa Carolina, filha do cantor com Cláudia Faissol — a quem Maria do Céu, mesmo se recusando a mencionar (“eu não gostaria de me referir a essa senhora”), responsabiliza pela decadência financeira e emocional de João.
Nesta entrevista exclusiva ao GLOBO, concedida no escritório de seu advogado, Roberto Algranti, a moçambicana de 56 anos — personagem que sempre se manteve nos bastidores da vida de João, longe dos holofotes — conta detalhes de sua intimidade com o músico (como o gosto dele por MMA e passeios noturnos de carro), lembra seus últimos momentos e dá sua visão sobre o imbróglio que se tornou a vida do artista na última década. Apesar da voz controlada, fala de si mesma usando expressões como “cangaceira” e deixa claro:
— Eu fico freando, freando. Aí, quando eu vou, é pra não perder. Vou pra te botar no teu lugar. E te boto.
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Como foi o encontro de vocês?
Fui ver um show dele, foram três dias no Coliseu dos Recreios. No dia 10 de junho foi o último show. No dia de Santo Antônio, 13 de junho, resolvi ligar pro João, no Hotel Alfa, em Lisboa. Ela falou: “Como é o seu nome? Maria do Céu? Vem aqui.” Aí eu fui e nunca mais saí. Eu era menina demais, criada na aldeia. A gente não conversou muito. Ele tocou a noite inteira. “Numa casa portuguesa fica bem...” (cantarola) .
Como era sua vida na época?
Eu tinha sido Miss Portugal, era manequim, fazia televisão, gostava de teatro, queria ser atriz. As irmãs de minha mãe cantavam. Tinha uma tia, Astra Harris, que gravou num CD de Martinho da Vila, “Lusofonia”. Fiz só até o Liceu (equivalente ao ensino médio). A minha arte começa com João Gilberto.
Como veio parar no Brasil?
João me falou: “Venha pro Brasil”. Ele teve que pedir dinheiro emprestado pra comprar minha passagem. Veio antes, eu vim em setembro. Saí de lá e passaram-se seis anos sem ninguém da minha família saber de mim. Minha mãe achou que eu tinha morrido. Acho que eu era meio exótica. Minha mãe chorou muito. Quem falou com ela foi João. Eu era doida, né? Depois ele demorou a fazer show lá, eu perguntava por que e ele dizia: “Eu só fui a Portugal pra buscar você.”