“Retirantes” – 1944, quadro do pintor Cândido Portinari
Certo dia – era mês de agosto – chegara ao cabaré de Maria Bago Mole Dona Severina de Jesus com seus seis filhos. O primeiro ainda era de menor. O caçula, com dois anos, ainda procurava leite nos peitos murchos da mãe. O marido tinha desaparecido numa caçada misteriosa na mata à procura de comida. A cena da mãe com os filhos caminhando rumo ao cabaré à procura de abrigo parecia uma metáfora do quadro “Retirantes” de 1944, do genial pintor modernista Cândido Portinari, obra-prima emblemática da arte brasileira de cunho social, com influência expressionista.
Dona Severina de Jesus era uma mulher mediana, raçuda, de personalidade forte, olhos pretos tristes, cabelos longos, coxas torneadas. Bonita e bem afeiçoada para o nível e situação de vida vivida. Era-lhe perceptível no semblante que estava passando necessidades, principalmente os filhos: todos estavam passando fome há muito, só comento raízes, quando encontravam nos sítios das estradas por onde passavam e uma irmã de caridade dava!
Do caminho da roça ao cabaré se deparou com muitas famílias bastardas querendo “adotar” seus filhos, principalmente os três mais novos. Mas ela dizia não. Como mãe, para onde fosse os filhos iam juntos, seguindo sua sombra, na alegria, na dor, na tristeza, no sofrimento. Onde comesse e dormisse um, comiam e dormiam todos sob sua proteção.
Sabendo da existência do famoso cabaré de Maria Bago Mole na Vila dos Vinténs, para lá Dona Severina de Jesus e os filhos foram à procura da famosa cafetina para pedirem guarida, uma vez que diziam ser ela altruísta, apesar de ser o lugar um entreposto de carne mijada de jovens adolescentes que “se perdiam” com os namorados e eram expulsas dos sítios pelos pais, que não admitiam filhas “defloradas” e “mal faladas” morando no lar.
Um dia de sol a pino, Dona Severina de Jesus saiu de casa logo cedo rumo ao cabaré. A cada filho, antes de sair, deu um pote de água e dois pedaços de raiz cozida no fogão de lenha da casa, que ainda lhe restava no armário de barro. Juntou as tralhas necessárias que lhes podiam ser de serventia, enrolou os panos velhos, fez uma trouxa, pôs na cabeça, fechou a tramela da porta da frente da casa e partiu com os filhos lacrimejando sem dar adeus àquela que a acolheu do sol e da chuva e os filhos durante anos.
Antes de chegar ao cabaré de Maria Bago Mole, Dona Severina de Jesus sentiu um friozinho no pé do umbigo, pois jamais esperava encontrar um ambiente tão movimentado, diferente do seu universo particular: caminhões, cortadores de cana, atravessadores, a maioria vindo das fazendas de cana de açúcar e da trilha da ferrovia, que uma empresa americana estava instalando para o escorrimento da cana até o porto da Capital.
Como necessidade faz sapo voar, Dona Severina de Jesus desacanhou-se e se dirigiu até o balcão onde estava a cafetina organizando o cabaré e dando ordens às “meninas” para a noite que estava caindo e prometia-se muito frege!
– Madame – dirigiu-se acanhada Dona Severina de Jesus a Maria Bago Mole – é a senhora a dona dessa casa “cristã?”
A cafetina, com o altruísmo que lhe era peculiar, afirmou que sim. E perguntou à retirante o que fazia ali com aqueles meninos e se estava precisando de alguma ajuda. Mas antes de esperar a resposta, mandou Dona Severina de Jesus entrar, preparou uma mesa com sete assentos, ofereceu-lhe comida e aos filhos, e cochichou no ouvido da retirante, sorrindo:
– Coma primeiro com seus filhos! Depois a gente conversa sobre o seu destino e dos meninos aqui na casa! – Disse com os olhos brilhosos que encantaram Seu Bitônio Coelho desde o primeiro dia que a viu!