RIO - Não bastou para Marcos Valle fazer apenas um disco pop. Depois de lançar em junho, pelo selo inglês Far Out, o dançante “Sempre”, ele volta no próximo dia 10 com “Cinzento” (Deck), um álbum que surgiu como uma sugestão do produtor Rafael Ramos: que Marcos retornasse ao estúdio da gravadora (onde ele produziu, junto com Roberto Menescal, o disco “O Tom da Takai”, de 2018, da cantora Fernanda Takai), aproveitasse seus instrumentos e equipamento vintage e assim retomasse a pegada balançada de um de seus álbuns mais cultuados, “Previsão do tempo” (1973).
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Aos 76 anos (mas com entusiasmo e gás de menos de 30), o cantor encarou o desafio e produziu o disco sozinho, com sua banda base (o baixista Alberto Continentino e o baterista Renato Massa), mas recorrendo a uma nova leva de parceiros, como Emicida, Bem Gil, Moreno Veloso, Domenico Lancellotti, Jorge Vercillo e Kassin (que abriu o seu estúdio para Marcos finalizar o disco tocando em todos os sintetizadores que quisesse). O resultado foi um disco balançado, que remete a “Previsão do tempo” também pela alternância de letras que tratam do amor e de um difícil período político.
— Nesse momento cinzento, de ódios e brigas, não há melhor antídoto do que o amor — ensina Marcos, que estreia o repertório de “Cinzento” no Rio, em show no dia 18 de janeiro na Madrugada no Centro do CCBB, e antes se apresenta no réveillon de Inhotim.
São dois discos pop em menos de um ano, não?
Sim. Antes do “Sempre”, meus discos tinham sido numa linha mais jazzística, mais da bossa. Tudo isso me deu imenso prazer, mas havia esse lado do ritmo, dos grooves, que é tão forte para mim quanto o meu lado melódico. Estava sentindo falta dele. Com o “Sempre” ficou essa sementinha. Quando o Rafael puxou por esse meu outro lado, falando que a Polysom (fábrica de LPs da Deck) iria reeditar o “Previsão do tempo”, aquilo bateu.
Em que ponto de sua carreira você percebeu que tinha começado a falar com um público mais jovem?
Foi no começo da década de 1990, quando eu soube que os DJs lá de Londres estavam tocando minhas músicas nas pistas de dança para os jovens. E quem me falou isso foi a Joyce, que já estava tocando naquela cena. A partir dali, em pouco tempo eu comecei a ser chamado para fazer shows, e logo no primeiro, em 1994, no Jazz Café, vi a garotada vibrando. E aí vieram convites para gravar discos novos, já que os antigos estavam sendo até pirateados.
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Mas isso não tinha acontecido antes, em 1983, com o “Estrelar”?
Sim, ela puxou uma geração nova que muitas vezes nem me conhecia, porque eu tinha passado muito tempo fora (nos EUA, gravando com a cantora Sarah Vaughan e o grupo Chicago). Ed Motta e Toni Garrido diziam que a partir dali é que eles começaram a seguir a minha música. Mas foi uma música só, e eu nem fiz shows naquela época, só os playbacks nos bailes de subúrbio. Onde eu fui sentir mais a presença de um público novo foi nos anos 1990, porque aí era a minha banda e várias músicas.
Alguma vez sentiu que não entendia a juventude ou que a juventude não o entendia?
Nunca, eu tenho essa coisa de criança em mim, meu lance é ouvir o que os jovens dizem. Meus filhos nasceram depois que eu tinha 49 anos, tudo isso me trouxe uma proximidade com o pessoal mais novo. Musicalmente, também, eu sempre fui muito curioso. E uma vantagem é que eu gosto muito do ritmo, e o ritmo me aproxima do jovem.
Como surgiram as novas parcerias de “Cinzento”?
Como eu tinha feito as letras para o “Sempre”, pensei que em “Cinzento” era melhor entregar as músicas para outros letristas. E como saíram muitas melodias na onda do “Previsão do tempo”, resolvi mandá-las para as pessoas de outras gerações que foram influenciadas por esse disco, como o Moreno Veloso, o Bem Gil, o Domenico Lancellotti e o Kassin.
Além dos novos parceiros, “Cinzento” tem a volta do seu irmão, Paulo Sérgio Valle, com quem você fez clássicos...
A gente não fazia música juntos há bastante tempo, mas continuamos amigos. Desta vez eu quis ter o Paulo Sérgio, até porque ele estava no “Previsão do tempo”. Então eu mandei pra ele uma valsa e pedi uma letra que não fosse objetiva, que fosse sobre um amor mais espiritual, e o resultado (“Nada existe”) ficou ótimo. Somos irmãos de idades muito próximas e, quando começamos profissionalmente na música, tínhamos a vantagem de morar na mesma casa. Tínhamos uma maneira muto próxima de pensar. Quando eu fazia uma melodia, ele falava: “É isso que você quer dizer?” E quase sempre era. É como se a minha música tivesse uma transparência do que eu estava imaginando.
Por que um disco tão solar foi se chamar “Cinzento”?
Ao mesmo tempo em que esse disco tem groove, balanço, essa parte musical tão solar e variada, ele não pode escapar do fato de que estamos vivendo uma era complicada. Principalmente em relação às artes e à cultura, esse ódio, esse clima desagradável, de ofensas a artistas, isso me passou um clima totalmente cinzento. Ao mesmo tempo em que estava muito feliz no estúdio, vivia muito inseguro pela cultura no Brasil. E quando o Emicida, numa das músicas que fez comigo, pediu para botar o título de “Cinzento”, vi que era aquilo ali. Eu não digo que está preto, nem que está solar. Está cinzento, é o meu receio do que vai rolar.
Em 2020, o que você faz depois de lançar “Cinzento”?
Em maio vou para o Japão com Os Bossa Nova (grupo com Roberto Menescal, Carlos Lyra e João Donato), em junho para Los Angeles para lançar o disco “Jazz is dead” (com os produtores Adrian Younge e Ali Shaheed Muhammad) e mais adiante faço turnê pela Europa. Existe uma ideia de um disco novo com o (músico e produtor inglês) Tom Misch, um talento de 23 anos, mais jovem que os meus filhos. Ele esteve aqui, trabalhamos três músicas e queremos fazer um projeto juntos. Acho que agora não vou mais parar de gravar, não. Acho que serão pelo menos dois discos por ano, tenho muita música na cabeça, e se não botar para fora vou ficar maluco!