Marco Nanini avisa que ainda está aprendendo a interpretar. Embora tenha mais de cem obras no currículo — e seja povoado por toda a sorte de tipos brasileiros —, o ator de 74 anos sente uma “tensão doida e sofrida” a cada novo trabalho. Sob a pele de um homem comum, desses que não fosse a fama passaria despercebido, o artista guarda um fascínio pela própria capacidade de ser muitos.
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— Há muita gente dentro de mim. Penso nisso o tempo todo. E adoro viajar nessa ideia. Tenho total consciência de que a fantasia é eterna dentro de mim — afirma o ator.
Parte dessa multidão é retratada no livro “O avesso do bordado”, escrito pela jornalista e roteirista Mariana Filgueiras, com lançamento no dia 1º de fevereiro. Editada pela Companhia das Letras, a biografia segue a cartilha de obras do gênero: revisita a infância e acompanha o crescimento profissional do ator, rosto de sucessos no teatro, na TV e no cinema.
Infância nômade
Condicionado a uma vida nômade devido à profissão do pai, gerente de hotéis de luxo — ele peregrinou por Recife, onde nasceu, João Pessoa, Salvador, Manaus e Belo Horizonte, antes de se fixar no Rio de Janeiro —, o pequeno Nanini era daqueles que não perdia a chance de tomar autógrafos de misses, figurões da sétima arte e presidentes (JK e Castelo Branco, entre eles), num caderninho conservado até hoje.
Nas páginas biográficas, estão intimidades pouco abordadas, como as primeiras grandes amizades (com nomes como Pedro Paulo Rangel e Ary Fontoura), os namoros — de Wolf Maya a Marília Pêra —, a cumplicidade inusitada com Renato Russo e a antiga dependência de Mandrix, sedativo que, associado ao álcool, causava um transe. Febre nos anos 1970 até ser proibida na década seguinte, a droga fez com que Nanini desmaiasse ao volante, o que o levou a abandonar o vício.
— Já me exponho tanto no palco. Para que ficar me exibindo? Quando era mais moço, me soltava, contava piada... De uns tempos pra cá, entendi que não era mais jovem. E aí falei: tenho que parar um pouco com essa infantilidade de brincar. Decidi sossegar um pouco.
Num primeiro momento, a decisão de realizar uma biografia — e foi o próprio biografado quem escolheu e procurou a biógrafa — pode soar surpreendente. Não se trata de um aceno nostálgico, mas da afirmação de uma história que o ultrapassa.
— Há coisas que havia esquecido completamente, e lembrei com carinho. Mas o que passou, passou — diz o ator, que está terminando de folhear as derradeiras páginas do livro. — Tornei-me também um leitor de mim. Tomara que possa me lembrar de mais tempos daqui pra frente.
A bem da verdade, a corajosa decisão de se expor já aconteceu outras vezes. Em 2011, Nanini revelou publicamente a homossexualidade. À época, interpretava Lineu, o popular patriarca de uma tradicional família brasileira, no seriado “A grande família”. Há 36 anos, é casado com o produtor Fernando Libonati. Os dois não pensam em filhos:
— Gosto de criança dos outros, com o pai e a mãe do lado. Comigo sozinho, vai cair da minha mão. Ficaria em pânico. Aí desisti disso, mas com muita certeza e segurança.
Nando e Nanini, como são chamados pelos amigos, também são parceiros profissionais e vivem em casas vizinhas, com uma passagem entre os muros, na companhia de seis cachorros.
— Conheço tantos casais de todos os jeitos: mulheres e homens bissexuais, transexuais, pansexuais. Chegou uma hora em que falei: tenho que normalizar, para não ficar me escondendo. — recorda ele, que se espanta com o avanço do conservadorismo no país, inclusive entre colegas como Regina Duarte e Cássia Kis. —Não compreendo essas pessoas. Não é nem uma questão de política. É uma questão de moral. Nunca poderia acreditar que certas pessoas fossem tão conservadoras a ponto de não suportar a homossexualidade, o negro, o pobre. Fico assustado. Acho fascista. Não imaginaria nunca essa corrente forte. Tanto é que eu estou comprando um monte de livros sobre fascismo para entender como é que isso nasceu e cresceu.
— Não pretendo fazer nada. Já fiz muita festa. Acho que vou ficar quieto. No máximo, uma coisinha pequena, um jantar... Mas isso também dá muito trabalho — diz ele, que abriu uma conta fake no Instagram só para espiar vídeos engraçados com crianças e bichos, algo que lhe serve de inspiração para o ofício artístico. — Os animais e as crianças fazem coisas tão irreverentes que absorvo um pouco essa energia deles. Mas não sei mexer em computador. É difícil, mas tento. Não sei nem o que é “stop” (ele se refere aos Stories, recurso de vídeos e fotos instantâneos do Instagram).
'Muitas afinidades' com Marília Pêra
Foi com Marília Pêra que Marco Nanini realizou dois dos seus maiores sucessos. No teatro, ela o dirigiu em “Irma Vap”, peça na qual o ator contracenava com Ney Latorraca e consagrada no “Guinness” como o espetáculo que ficou mais tempo em cartaz com o mesmo elenco, de 1986 a 1997. Na TV, a dupla formou uma parceria impagável na novela “Brega & chique” (1987). E haveria um novo reencontro, se Marília tivesse aceitado o convite para interpretar Dona Nenê em “A grande família”, papel que depois coube a Marieta Severo.
Marília Pêra e Marco Nanini na novela “Brega & chique” (1987) — Foto: Divulgação
De acordo com a biografia de Nanini, logo após o término “Irma Vap”, houve um desentendimento entre os dois, algo jamais superado. Ao ser perguntado sobre as memórias que cultiva acerca da atriz, que hoje completaria 80 anos, Nanini frisa:
— A gente foi muito amigo, a ponto de ter um caso rápido. Eram muitas afinidades. Mas em “Irma Vap” houve um problema, e a gente rompeu. Ali foi o fim. Fiquei sentido, claro. Teve uma brigalhada danada. Mas é assim: na vida, tudo acaba — afirma ele, que manteve o distanciamento até a morte de Marília, em 2015, e que hoje prefere não entrar em detalhes sobre o imbróglio. — Não ficou nada para resolver, porque falamos tudo. Dali em diante, não houve clima. Foi uma discussão fortíssima. A gente teve reunião com advogados. Foi tudo muito pesado, então foi definitivo mesmo. Mas continuo a admirando e tendo o prazer das lembranças de todos os encontros.
Para Nanini, as relações de trabalho e amizade sempre se embaralharam. Ele se emociona ao lembrar do amigo Pedro Paulo Rangel, morto em dezembro, e com quem iniciou a carreira num grupo de teatro amador, na igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, no bairro carioca de Botafogo.
— Essa coisa de ir perdendo os amigos é difícil. Sinto que vai embora um pedaço de mim — lamenta. — A finitude é uma surpresa. É um golpe. Fico me lembrando de tudo... Mas não com saudosismo. Até porque não tem jeito, né? Um dia termina a missa.