O prenome de imperador romano, a vaidade tão pesada que deve ser calculada em arrobas, o olhar de quem treina para virar estátua, a arrogância que identifica os que acham que a toga é que deve orgulhar-se de cobrir-lhe o corpo, o prazer sensual com que ouve o som da própria voz entoando expressões ignoradas pela plebe — tudo isso, junto e misturado, subiu de vez à cabeça de Marco Aurélio Mello. E ordenou-lhe que caprichasse na liminar que, se fosse levada a sério pela Justiça brasileira, colocaria em liberdade todos os bandidos que cumprem pena depois de condenados em segunda instância.
Que Nero, que nada: sem uma Roma para incendiar, Marco Aurélio I, o Imperador das Cadeias, resolveu destruir com uma canetada a jurisprudência recentemente reafirmada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, a segurança jurídica e a esperança no triunfo da lei sobre o crime, e da honradez sobre a falta de vergonha na cara. O ministro coleciona molecagens, sentenças idiotas, chiliques de debutante e odes ao descaramento desde que foi presenteado com uma toga pelo primo Fernando Collor. Até esta assombrosa quarta-feira, contudo, era possível acreditar que mesmo para um marcoauréliomello existem limites.
Não existem, atesta a liminar produzida na véspera do recesso do Judiciário. O latinório ridículo e algumas condicionantes malandras procuram inutilmente camuflar o objetivo do autor: tirar Lula da cadeia. As restrições inócuas não passam de um truque diversionista concebido para ocultar as aberrações decorrentes da torpeza original. Com o ex-presidente condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, recuperariam o direito de ir e vir (e roubar, e matar, e revogar por dias ou semanas a ordem legal) uma imensidão de assassinos, estupradores, latrocidas e, claro, delinquentes de estimação de Marco Aurélio e seus comparsas.
A afronta ao país que presta deve ser barrada de imediato pela reação da banda sadia do STF, do Ministério Público e dos magistrados que ouvem a voz da Justiça, não os sussurros dos que conspiram contra o império da lei. A liminar de Marco Aurélio merece ser atirada à lata de lixo mais próxima por juízes de verdade, que não se curvam bovinamente a determinações intoleráveis. O Brasil se tornará bem melhor se for socorrido por uma variação da boa e velha desobediência civil. Tal arma, manejada com altivez e destemor, já sufocou no nascedouro tantos surtos de demência autoritária. É hora de usá-la para expulsar Marco Aurélio do seu trono imaginário.